quarta-feira, 7 de março de 2018

Sampa



Caetano Veloso

Alguma coisa acontece
No meu coração,
Que só quando cruzo a Ipiranga
E a Avenida São João…

É que, quando eu cheguei por aqui,
Eu nada entendi
Da dura poesia
Concreta de tuas esquinas,
Da deselegância discreta
De tuas meninas…

Ainda não havia para mim Rita Lee
A tua mais completa tradução,
Alguma coisa acontece no meu coração,
Que só quando cruzo a Ipiranga
E a Avenida São João…

Quando eu te encarei
Frente a frente
Não vi o meu rosto.
Chamei de mau gosto o que vi,
De mau gosto, mau gosto.
É que Narciso acha feio
O que não é espelho,
E a mente apavora
O que ainda não é mesmo velho,
Nada do que não era antes
Quando não somos mutantes…

E foste um difícil começo,
Afasto o que não conheço
E quem vem de outro sonho
Feliz de cidade,
Aprende de pressa a chamar-te
De realidade,
Porque és o avesso
Do avesso, do avesso, do avesso…

Do povo oprimido nas filas
Nas vilas, favelas,
Da força da grana que ergue
E destrói coisas belas,
Da feia fumaça que sobe
Apagando as estrelas.
Eu vejo surgir teus poetas
De campos e espaços,
Tuas oficinas de florestas,
Teus deuses da chuva…

Panaméricas
De Áfricas utópicas,
Túmulo do samba,
Mais possível novo,
Quilombo de Zumbi,
E os novos baianos
Passeiam na tua garoa,
E novos baianos
Te podem curtir numa boa…

→ O cruzamento da Avenida Ipiranga com a Avenida São João deve seu grande reconhecimento à música Sampa, de Caetano Veloso. A canção, lançada no álbum Muito − dentro da estrela azulada, de 1978, é uma homenagem a cidade paulistana, conhecida por sua garoa característica e pela recepção de um grande número de migrantes, em especial os baianos, como Caetano.

→ O curioso é que em uma cidade com grandes representantes como Os Mutantes e Demônios da Garoa, ninguém conseguiu decifrar São Paulo melhor do que o baiano Caetano Veloso. A obra–prima é composta falando das principais características da capital paulista. A poluição, a recepção para os migrantes, as múltiplas culturas e o sonho de quem vem de fora estão presentes na composição.

O texto abaixo é de Sergio Soeiro

→ A despeito de “Sampa” ter sido composta no final dos anos 70, Caetano procurou colocar nos versos a primeira impressão que teve da grande metrópole quando lá desembarcou, ainda na década de 60. Vindo de um espaço ainda muito ligado à natureza, o baiano sentiu o estranhamento diante de tudo o que viu, e procurou mostrar o conflito estabelecido entre inocência versus ciência, com esta última tornando-se responsável pela destruição dos valores realmente humanos, do aniquilamento e da insignificância do homem na cidade. Este conflito fica bem evidente nos versos: “E foste um difícil começo (…) E quem vem de outro sonho feliz de cidade / Aprende depressa a chamar-te de realidade…”. Os versos de “Sampa” expressam o fascínio e a repulsa, o conflito diante do novo e desconhecido, deixando implícita a ambiguidade da questão: Seria a felicidade possível naquela cidade? Conhecer seus segredos, seus mistérios, encantar-se com sua sedução, atingir o topo das realizações, enfim tornar realidade os seus sonhos, eis o que todos os migrantes esperam ao chegar em “Sampa”.

→ A emoção ao “cruzar a Ipiranga com a São João” se dá pelo fato que ele desceu do ônibus que veio do Rio de Janeiro cujo ponto final era exatamente naquela esquina. Diante dos seus olhos lá estavam a Cinelândia, o bar Jeca, e o Brahma.

→ No verso “Da dura poesia concreta e tuas esquinas…” ele faz uma homenagem aos poetas paulistanos criadores do movimento modernista, onde se incluía a poesia concreta.

→ “A deselegância discreta de tuas meninas…” Se dá pelo fato de que naquele tempo Caetano era uma figurinha um tanto quanto exótica, daí sua grande cabeleira ter chamado a atenção das meninas que cochichavam com risinhos discretos.

→ Enquanto atravessava a São João para a Ipiranga, ainda atônito, procurava na multidão um rosto com quem pudesse se identificar, e na sua visão tropicalista achou de mau gosto o jeito dos paulistanos, mas também faz uma autocrítica e considera que o erro estético não está, necessariamente, nos paulistanos, mas sim nele mesmo, pois sua mente se “apavora no que ainda não é mesmo velho / nada do não era antes” (da visão que trazia da sua cidade) e que ele talvez ainda não seja capaz de alcançar aquela modernidade pois ainda não é um “mutante”, e aqui ele faz uma homenagem aos seus amigos do grupo “Mutantes”, bem como à Rita Lee.

→ Refeito do primeiro impacto, o sentimento seguinte foi de solidão, pois embora no meio da multidão, não encontrava a sua própria imagem refletida nas feições dos paulistanos.

→ Diante da realidade do momento acha que encontrou o avesso do que sonhava. Para se justificar da decepção, fala do lado ruim do que vê: filas, poluição, o povo oprimido, da modernidade, o novo excluindo o antigo, tudo tão diferente da simplicidade da sua terra natal.

→ No verso “da força da grana que ergue e destrói coisas belas…” quer mostrar a dualidade para o bem e para o mal que existe em tudo e em todos.

→ Quando cita “Panaméricas”, ele se refere a um amigo escritor paulistano, José Agripino de Paula, autor do livro “Panamérica”.

 “Túmulo do samba” é uma expressão atribuída a Vinicius de Moraes que afirmava que os compositores paulistas não possuíam ritmo e gingado de sambistas, que batizou São Paulo como o túmulo do samba, e considerava que o único local onde se fazia samba de verdade era nos “Quilombos”.

→ E por fim, já aclimatado com a garoa, ele, junto com seus amigos baianos, curtem “Sampa” numa boa.


Encontro histórico: João Gilberto, Caetano Veloso e Gal Costa, em 1971. 





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