Paulo Mendes*
(Bolicho de beira de estrada de Uberti)
Dizem que a poesia é uma espécie de
regresso para casa. Talvez seja, por isso mesmo, que tento desesperadamente
resgatar o perdido para sempre; o que não tem mais volta. Antevendo, li tantos
poemas, desde guri, depois que me vim embora deixando para trás o cheiro das
maçanilhas nas manhãs de primavera, a marcela(1) florida nas tardes de outono. Eu
vim porque quis, não me obrigaram, eu era um potro que escarceava(2) na coxilha,
pedia rédea, escaramuçava(3) e alçava cola(4). Então, um dia, rebentei a soga(5) e
larguei de tiro(6), levantando poeira na estrada, olhos vidrados no infinito,
porque o sonho era vasto e tinha ânsias no peito. Não vim reto, fui parando
aqui e ali, arrebanhando experiência e tino, olhando e aprendendo. Ouvindo os
mais judiados de tanta Pampa(7) e lonjuras. Depois boleei a perna(8) nesta capital,
ao lado deste grande rio que me lembra os outros todos que cruzei. Passaram-se
meses e anos, criei raízes. Fui ficando.
Lembro: a primeira parada grande foi em Santa Maria da Boca do
Monte, na universidade federal. Na época, era um desafio para um bolicheiro(9) de
beira de estrada, carroceiro e filho de gente humilde, chacareiros. Guri criado
“pra fora”(10), mas que sempre gostou da leitura e dos livros. Não foi fácil, mas
cumpri a missão, com denodo, ajuda da família e dos amigos que fui juntando
pelo caminho. Depois de algumas experiências profissionais, fui tentar a sorte
na serra gaúcha, em Caxias do Sul, que nos anos 1980 já era uma potência
industrial onde havia empregos, inclusive na área do jornalismo. Após dois
anos, vim para a Capital fazer um mestrado na UFRGS, na área de Literatura
Brasileira.
Por obra do destino, acabei indo
parar na redação do centenário Correio
do Povo, onde fiz casa e morada. Era o jornal que aprendi a ler, onde li
meus primeiros poemas. No dia que entrei naquele prédio pela primeira vez me
emocionei tanto que comecei a chorar. Fui obrigado a ir ao banheiro me recompor
antes de falar com a jornalista que iria me entrevistar. Felizmente deu tudo
certo.
Tantas águas rolaram daquele dia para cá. Muitas coisas, algumas ruins,
mas acho que no geral a maioria boa venceu. Tornei-me colunista, escritor,
publiquei livros, me chamam para palestras, fiz inúmeras amizades, ganhei prêmios
e homenagens. A tudo isso só posso agradecer. Mas o guri de calça curta e pé no
chão descalço ainda vive em mim embora eu envelheça e me procure pelos meus
interiores, nos internos. Leio muito, recrio e transcrevo o que vivi, vasculho
a memória, me desabrigo, componho, voo pelas imensidões do sonho e da
imaginação. Mas tenho a impressão de que faço parte de uma tropeada. Um
movimento circular em que depois de ter me afastado começo a me reaproximar.
De certa forma, todos os dias volto para casa. Refaço o caminho solito(11) como uma ave de arribação cansada que começa a pousar. Penso e sigo, assim, aos
tropeços, destaperado(12) de mim mesmo, resgatando o absoluto que existia e que
hoje me falta. Por onde andei me trataram bem, me aceitaram e, reconheço, me
senti feliz. Porém, sempre me senti um forasteiro. Um dia voltarei para a Vila
Rica para me plantar, para sempre, na querida e amada terra onde cresci, lá
onde as andorinhas fazem desenhos bêbados no céu de dezembro.
*****
*Jornalista e escritor gaúcho, escreve suas
colunas no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, RS.
Glossário:
(1) Marcela:
Erva muito usada para chás medicamentosos e para encher travesseiros. Variação
de macela.
(2) Escarceava: Menear
a cabeça, cabecear.
(3) Escaramuçava:
Movimento súbito de rédea que obriga o cavalo a mudar de marcha.
(4) Alçava cola: Sair
apressado, ir embora.
(5) Soga: Corda de
couro ou sisal usada para prender o cavalo no palanque ou no poste.
(6) Largar de tiro: Sair
o mais rápido possível.
(7) Pampa: Planície
muito extensa com pouquíssimo mato, mas muito rica em pastagens.
(8) Bolear a perna:
Apear, descer, ou montar a cavalo.
(9) Bolicheiro: Aquele
que explora um boliche. O mesmo que bodegueiro.
(10) Pra fora: Criado pra fora, é o mesmo que criado no
interior.
(11) Solito: Sozinho.
(12) Destaperado: Sem tapera, que é uma casa de campo
abandonada.
(Do Dicionário Gaúcho, de
Alberto Juvenal de Oliveira)
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