sábado, 24 de março de 2018

O pátio de casa

Paulo Mendes*


(Bolicho de beira de estrada de Uberti)

Dizem que a poesia é uma espécie de regresso para casa. Talvez seja, por isso mesmo, que tento desesperadamente resgatar o perdido para sempre; o que não tem mais volta. Antevendo, li tantos poemas, desde guri, depois que me vim embora deixando para trás o cheiro das maçanilhas nas manhãs de primavera, a marcela(1) florida nas tardes de outono. Eu vim porque quis, não me obrigaram, eu era um potro que escarceava(2) na coxilha, pedia rédea, escaramuçava(3) e alçava cola(4). Então, um dia, rebentei a soga(5) e larguei de tiro(6), levantando poeira na estrada, olhos vidrados no infinito, porque o sonho era vasto e tinha ânsias no peito. Não vim reto, fui parando aqui e ali, arrebanhando experiência e tino, olhando e aprendendo. Ouvindo os mais judiados de tanta Pampa(7) e lonjuras. Depois boleei a perna(8) nesta capital, ao lado deste grande rio que me lembra os outros todos que cruzei. Passaram-se meses e anos, criei raízes. Fui ficando.

Lembro: a primeira parada grande foi em Santa Maria da Boca do Monte, na universidade federal. Na época, era um desafio para um bolicheiro(9) de beira de estrada, carroceiro e filho de gente humilde, chacareiros. Guri criado “pra fora”(10), mas que sempre gostou da leitura e dos livros. Não foi fácil, mas cumpri a missão, com denodo, ajuda da família e dos amigos que fui juntando pelo caminho. Depois de algumas experiências profissionais, fui tentar a sorte na serra gaúcha, em Caxias do Sul, que nos anos 1980 já era uma potência industrial onde havia empregos, inclusive na área do jornalismo. Após dois anos, vim para a Capital fazer um mestrado na UFRGS, na área de Literatura Brasileira.

Por obra do destino, acabei indo parar na redação do centenário Correio do Povo, onde fiz casa e morada. Era o jornal que aprendi a ler, onde li meus primeiros poemas. No dia que entrei naquele prédio pela primeira vez me emocionei tanto que comecei a chorar. Fui obrigado a ir ao banheiro me recompor antes de falar com a jornalista que iria me entrevistar. Felizmente deu tudo certo.

Tantas águas rolaram daquele dia para cá. Muitas coisas, algumas ruins, mas acho que no geral a maioria boa venceu. Tornei-me colunista, escritor, publiquei livros, me chamam para palestras, fiz inúmeras amizades, ganhei prêmios e homenagens. A tudo isso só posso agradecer. Mas o guri de calça curta e pé no chão descalço ainda vive em mim embora eu envelheça e me procure pelos meus interiores, nos internos. Leio muito, recrio e transcrevo o que vivi, vasculho a memória, me desabrigo, componho, voo pelas imensidões do sonho e da imaginação. Mas tenho a impressão de que faço parte de uma tropeada. Um movimento circular em que depois de ter me afastado começo a me reaproximar.

De certa forma, todos os dias volto para casa. Refaço o caminho solito(11) como uma ave de arribação cansada que começa a pousar. Penso e sigo, assim, aos tropeços, destaperado(12) de mim mesmo, resgatando o absoluto que existia e que hoje me falta. Por onde andei me trataram bem, me aceitaram e, reconheço, me senti feliz. Porém, sempre me senti um forasteiro. Um dia voltarei para a Vila Rica para me plantar, para sempre, na querida e amada terra onde cresci, lá onde as andorinhas fazem desenhos bêbados no céu de dezembro.

*****

*Jornalista e escritor gaúcho, escreve suas colunas no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, RS.


Glossário:

(1)  Marcela: Erva muito usada para chás medicamentosos e para encher travesseiros. Variação de macela.

(2)  Escarceava: Menear a cabeça, cabecear.

(3)  Escaramuçava: Movimento súbito de rédea que obriga o cavalo a mudar de marcha.

(4)  Alçava cola: Sair apressado, ir embora.

(5)  Soga: Corda de couro ou sisal usada para prender o cavalo no palanque ou no poste.

(6)  Largar de tiro: Sair o mais rápido possível.

(7)  Pampa: Planície muito extensa com pouquíssimo mato, mas muito rica em pastagens.

(8)  Bolear a perna: Apear, descer, ou montar a cavalo.

(9)  Bolicheiro: Aquele que explora um boliche. O mesmo que bodegueiro.

(10) Pra fora: Criado pra fora, é o mesmo que criado no interior.

(11) Solito: Sozinho.

(12) Destaperado: Sem tapera, que é uma casa de campo abandonada.

(Do Dicionário Gaúcho, de Alberto Juvenal de Oliveira)

Nenhum comentário:

Postar um comentário