sexta-feira, 9 de março de 2018

O lado feio e sujo da Guerra de Canudos



Antônio Conselheiro, O Rei dos Jagunços

Manoel Benício, correspondente do “Jornal do Commercio”,
do Rio de Janeiro

“Veio o dia 2. O acampamento já tresandava. Havia cadáveres de dois dias que não eram enterrados. Pelo campo, cavalos, bois e burros mortos a apodrecer ao tempo, porque o matadouro era no meio do acampamento, assim como o lugar das dejeções de toda esta promiscuidade animal”.

“Poucos dias depois do malogrado ataque a Canudos, a 28 de junho, era esta a situação dos soldados da 1ª e da 2ª Colunas, entregues à própria sorte e à ganância daqueles que sonham enriquecer com a guerra. Como foi o caso de um praça e sua companheira que, à beira do fogo, faziam beijus. De olho no lucro, o soldado dá instruções à mulher para fazê-los bem pequenos. Mal começou a vendê-los, “veio uma bala doida, que atravessou a cabeça, matando-o instantaneamente”.

Depois do assalto de 18 de julho a Canudos, enquanto os soldados esfomeados, em perseguição às criações do arraial, eram alvo fácil dos jagunços, de repente acontece o insólito encontro de Benício com sua mula, já ferida, alheia ao que se passava ao redor:

“No meio da coluna, impassível, quieta, alheia a tudo, com uma orelha baleada já e murcha, no mesmo ponto em que a deixara, olhando friamente para a praça, soberbamente heróica e dominadora, a minha pobre mula destacava-se em uma imobilidade marmórea”.

O correspondente foi igualmente espectador da agonia dos combatentes feridos que, trazidos para os improvisados hospitais, montados dentro do acampamento, morriam por falta de tratamento. Dentre tantas mortes inúteis, a do alferes Bezouchet sensibilizou-o particularmente.

O jovem alferes, “um entusiasmado criterioso e republicano sincero e sem mácula”, tinha fechado matrícula na Escola Militar para poder lutar em Canudos. Na noite em que dividia a barraca com Benício e o tenente Potengi, uma bala atingiu-o na cabeça enquanto dormia. Levado ao hospital, nem aí o infeliz Bezouchet ficou livre do perigo: outra bala vem acertá-lo, agora lhe varando o braço. Mal podendo falar, por causa da inflamação na garganta, o alferes ainda encontra forças para fazer-lhe um pedido: “pediu para que marcasse o lugar em que fosse enterrado, a fim de que sua senhora um dia pudesse mandar buscar os seus ossos”.

Aos exemplos de perspicácia dos jagunços, o repórter relata outros tantos sobre a coragem “destes celerados”. Um dia tiveram a ousadia suicida de querer tomar a artilharia do major Febrônio “a cacete, com a alavanca, malho e alvião”. Quando não partem para o confronto direto, acoitam-se atrás dos morros, dentro de buracos, nos galhos das árvores, e aí, um só homem é capaz de alvejar com pontaria certeira, durante horas, as barracas do acampamento, “sem que as dezenas de binóculos focalizados sobre ele descubram-no”.

Benício demonstra a mais leve reação quanto à prática da degola a que o Exército submetia os jagunços prisioneiros. Quando do assalto de 18 de julho a Canudos, limita-se ao registro lacônico da prática ultrajante: “Deu-se novo toque de carga e degola”. Toda vez que, de volta ao acampamento, o alferes Pacheco trazia a caça abatida, junto vinham alguns jagunços capturados, exibidos aos soldados, como troféus. Benício não faz qualquer alusão à degola que, nessas ocasiões, deve ter ocorrido. E sempre que, em outras ocasiões, fizer referência a ela, o repórter demonstrará a mesma indiferença, como se a prática, por serem os jagunços as vítimas, não fizesse dela um ato criminoso.

Manoel Benício desabafando: “Estou cansado, estou doente. O meu estômago, devido às águas horríveis que bebi durante longas semanas, a alimentação, a carne de bode e de vaca que ingeri sem sal e sem farinha durante semanas longas, tem contorções de cascavel ou coivara e pesa-me como uma chapa de chumbo. Pede água e rejeita-a depois. Sinto-me débil e repugna-me a comida. À noite tenho febre e desperto com uma secura intolerável”.

*****

Manoel Benício (Pernambuco, data desconhecida − local e data de morte desconhecidos) foi um professor, tabelião, militar e jornalista brasileiro radicado em Niterói.

Cursou o Colégio Militar, mas não chegou a se formar. Trabalhou como repórter do jornal O Tempo, durante a Revolta da Armada. Em 1897 o Jornal do Commercio o enviou a Canudos como correspondente de guerra.

Foi o primeiro repórter a denunciar a desorganização, fome e erros estratégicos da quarta expedição contra o arraial de Canudos. Por isso, foi fortemente repudiado pelo Clube Militar, que exigiu sua retirada da frente de batalha, o que levou o Jornal do Commercio a parar de publicar suas reportagens sobre a guerra.

Dois anos depois, em 1899, publicou o livro O Rei dos Jagunços: crônica histórica e de costumes sertanejos sobre os acontecimentos de Canudos. Três anos depois, Euclides da Cunha publicaria sua obra-prima Os Sertões (1902), sobre esta mesma guerra.


Capa do livro O Rei dos Jagunços,
de Manoel Benício


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