Antônio Conselheiro, O Rei dos Jagunços
Manoel Benício,
correspondente do “Jornal do Commercio”,
do Rio de Janeiro
do Rio de Janeiro
“Veio o dia 2. O acampamento já tresandava. Havia cadáveres de dois
dias que não eram enterrados. Pelo campo, cavalos, bois e burros mortos a
apodrecer ao tempo, porque o matadouro era no meio do acampamento, assim como o
lugar das dejeções de toda esta promiscuidade animal”.
“Poucos dias depois do malogrado ataque a Canudos, a 28 de junho, era
esta a situação dos soldados da 1ª e da 2ª Colunas, entregues à própria sorte e
à ganância daqueles que sonham enriquecer com a guerra. Como foi o caso de um
praça e sua companheira que, à beira do fogo, faziam beijus. De olho no lucro,
o soldado dá instruções à mulher para fazê-los bem pequenos. Mal começou a vendê-los,
“veio uma bala doida, que atravessou a cabeça, matando-o instantaneamente”.
Depois do assalto de 18 de julho
a Canudos, enquanto os soldados esfomeados, em perseguição às criações do
arraial, eram alvo fácil dos jagunços, de repente acontece o insólito encontro
de Benício com sua mula, já ferida, alheia ao que se passava ao redor:
“No meio da coluna, impassível, quieta, alheia a tudo, com uma orelha
baleada já e murcha, no mesmo ponto em que a deixara, olhando friamente para a
praça, soberbamente heróica e dominadora, a minha pobre mula destacava-se em
uma imobilidade marmórea”.
O correspondente foi igualmente
espectador da agonia dos combatentes feridos que, trazidos para os improvisados
hospitais, montados dentro do acampamento, morriam por falta de tratamento.
Dentre tantas mortes inúteis, a do alferes Bezouchet sensibilizou-o
particularmente.
O jovem alferes, “um entusiasmado criterioso e republicano
sincero e sem mácula”, tinha fechado matrícula na Escola Militar para poder
lutar em Canudos. Na
noite em que dividia a barraca com Benício e o tenente Potengi, uma bala
atingiu-o na cabeça enquanto dormia. Levado ao hospital, nem aí o infeliz
Bezouchet ficou livre do perigo: outra bala vem acertá-lo, agora lhe varando o
braço. Mal podendo falar, por causa da inflamação na garganta, o alferes ainda
encontra forças para fazer-lhe um pedido: “pediu
para que marcasse o lugar em que fosse enterrado, a fim de que sua senhora um
dia pudesse mandar buscar os seus ossos”.
Aos exemplos de perspicácia dos
jagunços, o repórter relata outros tantos sobre a coragem “destes celerados”.
Um dia tiveram a ousadia suicida de querer tomar a artilharia do major Febrônio
“a cacete, com a alavanca, malho e alvião”. Quando não partem para o confronto
direto, acoitam-se atrás dos morros, dentro de buracos, nos galhos das árvores,
e aí, um só homem é capaz de alvejar com pontaria certeira, durante horas, as
barracas do acampamento, “sem que as
dezenas de binóculos focalizados sobre ele descubram-no”.
Benício demonstra a mais leve
reação quanto à prática da degola a que o Exército submetia os jagunços
prisioneiros. Quando do assalto de 18 de julho a Canudos, limita-se ao registro
lacônico da prática ultrajante: “Deu-se
novo toque de carga e degola”. Toda vez que, de volta ao acampamento, o
alferes Pacheco trazia a caça abatida, junto vinham alguns jagunços capturados,
exibidos aos soldados, como troféus. Benício não faz qualquer alusão à degola
que, nessas ocasiões, deve ter ocorrido. E sempre que, em outras ocasiões, fizer
referência a ela, o repórter demonstrará a mesma indiferença, como se a
prática, por serem os jagunços as vítimas, não fizesse dela um ato criminoso.
Manoel Benício desabafando: “Estou cansado, estou doente. O meu estômago,
devido às águas horríveis que bebi durante longas semanas, a alimentação, a
carne de bode e de vaca que ingeri sem sal e sem farinha durante semanas
longas, tem contorções de cascavel ou coivara e pesa-me como uma chapa de
chumbo. Pede água e rejeita-a depois. Sinto-me débil e repugna-me a comida. À
noite tenho febre e desperto com uma secura intolerável”.
*****
Manoel Benício (Pernambuco,
data desconhecida − local e data de morte desconhecidos) foi um professor,
tabelião,
militar
e jornalista
brasileiro
radicado em Niterói.
Cursou o Colégio Militar, mas não
chegou a se formar. Trabalhou como repórter do jornal O Tempo, durante a Revolta da
Armada. Em 1897
o Jornal do Commercio o enviou a Canudos
como correspondente de guerra.
Foi o primeiro repórter a
denunciar a desorganização, fome e erros estratégicos da quarta expedição
contra o arraial de Canudos. Por isso, foi fortemente repudiado
pelo Clube Militar,
que exigiu sua retirada da frente de batalha, o que levou o Jornal do Commercio
a parar de publicar suas reportagens sobre a guerra.
Dois anos depois, em 1899, publicou o livro O Rei
dos Jagunços: crônica histórica e de costumes sertanejos sobre os
acontecimentos de Canudos. Três anos depois, Euclides da
Cunha publicaria sua obra-prima Os Sertões
(1902),
sobre esta mesma guerra.
Capa do livro O Rei dos Jagunços,
de Manoel Benício
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