Eu sempre me lembro de uma menina
cujo nome esqueci. Ela foi minha colega de aula no ensino fundamental, que era
chamado de Primário. Era uma guria triste, fechada, isolada. Sentava-se na
primeira fila, mas nunca falava. Parecia alheia a tudo. Era muito pobre. Nos
intervalos, ficava sozinha. Nem saía da sala. Todos implicavam com ela.
Inventavam mil apelidos para ela, que não se defendia. Apenas se encolhia. Às
vezes, tapava o rosto com a mão direita e assim ficava.
Uma tarde, voltei à sala, suado de um jogo
de futebol, para pegar minhas figurinhas na pasta e dei com ela sentada no seu
lugar com a cabeça entre os braços. Foi a primeira vez que vi a infelicidade em pessoa. Toquei no
ombro dela. A menina levantou lentamente a cabeça. Ficou me olhando sem sorrir,
sem mexer os lábios, sem nada. Eram olhos marrons de uma tristeza imensa, uma
melancolia devastadora. Aquilo me entrou pela alma e eu não aguentei. Saí
correndo sem as figurinhas. Fui me sentar numa pedra do pátio. Contive as
lágrimas.
Creio que uma vez ela reclamou para
um professor. Nada aconteceu. Cada um que se defendesse. Um dia, ela sumiu.
Passou quase um mês sem aparecer na aula. Quando voltou, apesar de ser quase
verão, usava uma touca de linha, que lhe dava, segundo a turma inteira, um ar
de astronauta. Falava-se muito em astronauta na época. Por que ela usava
aquilo? Não se demorou muito a saber: estava careca. Um colega puxou-lhe a
touca e ela ficou com a cabeça nua diante de todos. Chorou. Estava doente. Acho
que fazia quimioterapia. Nem a certeza que estava doente diminuiu a maldade
geral. Continuou a ser infernizada.
Eu me identificava vagamente com ela,
mas não sabia como defendê-la. Enfrentava diariamente um apelido que me revoltava:
nariz de fumar na chuva. Vem daí minha aversão a qualquer brincadeira que
envolva aspectos físicos das pessoas. A palavra bullying não existia. O fenômeno, sim. Outras duas ou três vezes eu
tentei me aproximar dela. Não funcionou. Ela percebia minha ambiguidade. Eu
olhava para ela com certa afetividade, mas andava com a galera que a
incomodava. A turma percebeu meu interesse e pegou do meu pé. Ganhei outro
apelido:
− Namorado da astronauta careca.
Penso nessa menina frequentemente.
Ela simboliza uma parte triste da infância. Sofria. Não era poupada. Crianças
podem ser impiedosas. Terá ela vencido a doença? Terá sido feliz? Por onde
andará? Eu preferiria uma palavra em português. Talvez
mesmo implicância desse conta. Em todo caso, serve bullying. Denominar o monstro ajuda a combatê-lo. Outro dia, de
repente, me veio à memória uma imagem improvável: a menina saindo da escola,
com sua touca preta e o uniforme do colégio, dobrando a esquina, junto a uma
casa com um enorme cipreste, e sumindo sem olhar para trás. Teria sido a última
vez que a vi? Era um fim de tarde ensolarado, mas eu me sentia triste.
Quantos anos se passaram até que eu
soubesse a verdade: aquela menina sofria bullying.
Nunca esquecerei seus olhos tristes. Há tantas coisas que não esquecemos talvez
por nos lembrarem da crueza do mundo.
Juremir Machado da
Silva, no Correio do Povo, janeiro de 2018.
(juremir@correiodopovo.com.br)
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