Por Carlos Heitor
Cony,
na Folha de S. Paulo,
em 31.12.2017
Este será o primeiro Natal que
enfrentaremos, pródigos e lúcidos. Até o ano passado conseguimos manter o
mistério − e eu amava o brilho de teus olhos quando, manhã ainda, vinhas
cambaleando de sono em busca da árvore que durante a noite brotara embrulhos e
coisas. Havia um rito complicado e que começava na véspera, quando eu te
mostrava a estrela onde Papai Noel viria, com seu trenó e suas renas,
abarrotado de brinquedos e presentes.
Tu ias dormir e eu velava para que
dormisses bem e profundamente. Tua irmã, embora menor, creio que ela me
embromava: na realidade, ela já devia pressentir que Papai Noel era um mito que
nós fazíamos força para manter em nós mesmos. Ela não fazia força para isso, e
desde que a árvore amanhecesse florida de pacotes e coisas, tudo dava na mesma.
Contigo era diferente. Tu realmente acreditavas em mim e em Papai Noel.
Na escola te corromperam. Disseram
que Papai Noel era eu − e eu nem posso repelir a infâmia e o falso testemunho.
De qualquer forma, pediste um acordeão e uma caneta − e fomos juntos, de mãos
dadas, escolher o acordeão.
O acordeão
veio logo, e hoje, quando o encontrar na árvore, já vai saber o preço, o prazo
de garantia, o fabricante. Não será o mágico brinquedo de outros Natais.
Quanto à caneta, também a compramos
juntos. Escolheste a cor e o modelo, e abasteceste de tinta, para “já estar
pronta” no dia de Natal. Sim, a caneta estava pronta. Arrumamos juntos os
presentes em volta da árvore. Foste dormir, eu quedei sozinho e desesperado.
E
apanhei a caneta. Escrevi isto. Não sei, ainda, se deixarei esta carta junto
com os demais brinquedos. Porque nisso tudo o mais roubado fui eu. Meu Natal
acabou e é triste a gente não poder mais dar água a um velhinho cansado das
chaminés e tetos do mundo.
*****
*A última crônica de Carlos
Heitor Cony, que faleceu no dia 5 de janeiro de 2018. Ele tinha 91 anos.
(14.03.1926 – 05.01.2018)
→ Abaixo, uma crônica de Carlos
Heitor Cony, publicada pela Folha de S. Paulo no dia 5 de março de 2017. O
grande escritor e jornalista carioca, que já vinha muito doente há vários anos,
praticamente estava se despedindo, naquele seu estilo irônico e rascante.
Se eu morrer amanhã
Carlos Heitor Cony
Carlos Heitor Cony
por Osvalter
Se eu morrer amanhã, não levarei
saudade de Donald Trump. Também não levarei saudade da operação Lava Jato nem
do mensalão. Não levarei saudade dos programas do Ratinho, do Chaves, do Big
Brother em geral. Não
levarei nenhuma saudade do governador Pezão e do porteiro do meu prédio.
Se eu morresse amanhã, não levaria
saudade do rock, dos sambas-enredo do Carnaval, daquela águia da Portela nem
dos discursos do Senado e da Câmara, incluindo principalmente as assembleias
estaduais e a Câmara dos Vereadores.
Se eu morrer amanhã, não levarei
saudades dos buracos da rua Voluntários da Pátria, das enchentes do Catumbi,
dos técnicos do Fluminense, dos juízes de futebol, da Xuxa e das piadas
póstumas do Chico Anysio. Não levarei saudade do Imposto de Renda e demais
impostos, e muito menos levarei saudade das multas do Detran.
Não levarei saudade da vizinha que
canta durante o dia uma ária de Puccini (“oh mio bambino caro”) que ela ouviu
num filme do Woody Allen. Aliás, também não levarei saudade do rapaz que mora
ao meu lado e está aprendendo a tocar bateria.
Não levarei saudade das cotações da
Bolsa, das taxas de inflação e das dívidas externas do Brasil. Não levarei
saudade dos pasteis das feiras livres nem das próprias feiras livres, também
não levarei saudade dos blocos de índio que geralmente fedem mais do que os verdadeiros
índios.
Não levarei saudade dos lugares em que
não posso fumar, das lanchas de Paquetá e dos remédios feitos com óleo de
fígado de bacalhau. Não terei saudades das mulheres que usam silicone e blusas
compradas no Saara.
Enfim, não levarei saudade de mim
mesmo, dos meus fracassos e dívidas. Finalmente, não terei saudades dos
milagres dos pastores evangélicos nem de um mundo que cada vez fica mais
imundo.
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