sábado, 20 de janeiro de 2018

O circo chegou



O palhaço morreu, antes ele do que eu, e o bom menino que não faz pipi na cama, o bom menino que não faz má-criação coloca mais uma vez sua roupa de gala, pede a bênção ao pai português no balcão do armazém e sai em público, pimpão como lhe é de estilo, sem rede de segurança como lhe soa mais confortável, para contar que o palhaço pode ter feito a última palhaçada dos mortais, mas não morre jamais na memória, imaginação e estampa Eucalol de quem um dia o viu dar cambalhotas num circo do Largo do Bicão, Vila da Penha, Rio de Janeiro, Brasil. Foi não sei quando, foi mais ou menos por ali no que se costuma chamar de priscas eras. Onde o Judas perdeu as botas, onde o vento faz a curva. Antanho. Tempo do Ronca, do Onça, um desses. O Príncipe vestia hoje o homem de amanhã. A vaquinha estava mugindo, a vaquinha maluca estava sempre dizendo em benefício próprio que lhe bebessem o leite - beba leite em pó Mococa. Todos mortos. O Judas mau, o vento encanado, o príncipe valente, a vaquinha demente, o homem de amanhã e até mesmo o Dida, que não havia entrado nesta história e era o ídolo, ponta-de-lança do Flamengo, do menino que viu Carequinha, Fred, Zumbi e Meio-Quilo no circo Bom-Bril da pracinha onde morava, um subúrbio onde também não tem mais sapo coaxando como nos xotes do Luiz Gonzaga na Mayrink Veiga. Não tem bicheiro jogando nota de um cruzeiro para a garotada que corria atrás do carro. Tudo acaba e é bom que seja assim. Hoje não tem marmelada, hoje não tem goiabada cascão da Cica, nem César de Alencar gritando por toda a vizinhança de sábado, quatro da tarde, que esse programa pertence a vocês. Foi-se a infância, o bola ou búlica, o feridô sou rei, o tá com medo tabaréu, o bento que bento é o frade. Foi-se o que era doce, pera, uva ou maçã, e agora, para não deixar dúvida sobre o que anuncia o amargo e bala de tamarindo da língua, o palhaço bateu as botas deste picadeiro nem sempre engraçado. Foi armar a lona numa outra freguesia, no circuito off-Terra que não sai nos tijolinhos do Rio Show. A infância que se foi era um acontecimento com cheiro de sebo na bola de couro número cinco, palco iluminado por vaga-lumes trancados na caixa de fósforos. Era o fait-divers, o lead que começava a história sexual num pique-esconde dentro do armário e nada disso dia seguinte saía na “Luta Democrática” do Tenório Cavalcanti, porque já então os jornais preferiam as notícias ruins. Era felicidade em estado puro não porque de tempos sublimes, mas porque infância e a melhor de todas - a tua. Refresco de groselha, Falcão Negro enfiando a espada embaixo do sovaco do vilão Dary Reis, as coxas da Virginia Lane no Coelhinho Trol, o sabonete Cinta Azul tendo o prazer de apresentar “Bat Masterson”. Vivia-se felicidade cortante, linha de cerol de vidro moído mandando pro beleléu a rabiola adversária. Vivia-se o Drops Dulcora embrulhadinho um a um quando neste momento, justo como se prometia no início desta redação, o carro com o alto-falante anunciou pelo bairro que logo mais, não percam, Carequinha e sua trupe iam se apresentar na praça meia dúzia de quadras adiante. Havia quem gostasse do Henrique & Arrelia, aqueles do “como vai como vai como vai/como vem como vem! /vem vem”, mas os carcamanos tinham sotaque paulista demais, moravam em Jaçanã de longe, e nós, se ainda não ficou claro, estamos no túnel do tempo carioca, táxi de sete passageiros fazendo a curva na Brás de Pina, a “Fera da Penha” ainda à solta, os leões do Monroe vigilantes e o céu estrelado pela explosão do paiol de Deodoro. Aconteceu. Eu podia inventar uma nova aventura para o Ivanhoé e, neste momento, genuflexo, assobio que “sua espada e seu brasão são símbolos do rei/as vozes se levantam/dizendo com fervor/onde for iremos também”. Quem entenderia? Quem teria tomado Fosfosol suficiente para guardar essas figurinhas sonoras das balas Ruth? Poderia pedir força a todos esses heróis mortos e dizer que não esqueci o pacto. “Nós somos os Patrulheiros Toddy/ A lei juramos defender/ E sempre ao lado da Justiça/ Marchamos com prazer”. Podia criar uma Macondo cheia de borboletas estapafúrdias, uma asa amarela, outra azul; soltar o grilo falante da “Gladys e seus bichinhos”, fazê-lo cantar que o “Filho de Maria homem nasceu/ Serro Bravo foi seu berço natal/ entre tiros de metralha cresceu/ hoje luta pelo bem contra o mal”. Quantos moleques ainda estariam vivos? Quantos teriam tomado as colheres necessárias do vinho reconstituinte Silva Araújo para matar a charada e ao ouvir a música gritar três vezes, em uníssono emocionado, “Jerônimo, Jerônimo, Jerônimo”? Eu poderia delirar todas as Maracangalhas, as Pasárgadas, sítios do Pica-pau Amarelo e demais abstrações de felicidade, mas, silêncio! Começou a vesperal na Vila da Penha, num ano qualquer entre a Copa de 58 e a de 62, e a equilibrista em cima do fio recita para quem quiser ouvir, quem quiser rezar junto, o “Me dá alegria/ Me dá a força de acreditar de novo/ No pelo sinal da Santa Cruz”. O menino em corte Príncipe Danilo, quem sabe buscarré, por mais velho que tenha ficado não esquece onde guardou os seus tesouros e agora, no clímax dessa noite, abre sua caixa de bolas de gude, liberta os vaga-lumes da memória e deixa que o palhaço corra mais uma vez pelo picadeiro do Circo Bom-Bril. Carequinha usa uma prancha de madeira como trampolim, salta em cambalhota por cima de um carro e, tá certo ou não tá, garotada?, cai de pé, vivinho da silva, no outro lado do picadeiro − onde para sempre ficará, lado esquerdo de toda criança, na certeza e amém de que palhaços são os que param de brincar.


Data : 
Segunda-feira, 17 de abril de 2006
Joaquim Ferreira dos Santos


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