terça-feira, 9 de janeiro de 2018

O Caso Vinicius de Moraes



Como Vinicius de Moraes deixou o Itamaraty

 (Primeira versão)

Velho amigo do poeta Vinicius de Moraes escreve-me para convocar-me a ajudá-lo a desfazer “versão fantasiosa” sobre a maneira como o poeta se afastou, aposentado, do Itamaraty, em 1968. Ele era primeiro secretário no serviço diplomático e, segundo a fantasia, teria sido excluído da carreira por ordem do então presidente Arthur da Costa e Silva transmitida em memorando dirigido ao ministro da Exterior da época, José de Magalhães Pinto. O apelo que me foi feito relaciona-se com duas circunstâncias: a de ter sido também amigo do poeta e por ser o “decano da reportagem política”.

Enquanto se espera a abertura das urnas para contagem dos votos, o dia se apresenta propício a que se tente a revisão de um tema que poderá ser tratado sempre na base de uma versão que já está consagrada em livro. Na verdade, Ruy Castro, no seu festejado livro − “ Chega de Saudade − a história  e as histórias da bossa nova” − a endossa, oferecendo-a como a verdade sobre o afastamento de Vinicius de Moraes da carreira diplomática. Não tive tempo nem paciência, contudo, de ir ao arquivo do Itamaraty, como sugere o missivista, para examinar o maço referente ao nosso saudoso amigo.

Na página 408 da sua narrativa, diz Ruy Castro: “ ʽAssunto: Vinicius de Moraes. Demita-se esse vagabundo. Ass. Arthur da Costa e Silvaʼ. Com este grosseiro memorando ao chanceler Magalhães Pinto, o marechal-presidente decretou a saída do poeta do corpo diplomático em fins de 1968. Vinicius recebeu a notícia em alto-mar, a bordo da banheira de sua cabine no navio Eugênio C. Chorou convulsivamente, porque adorava o Itamaraty”.

Vamos à época e ao fato, segundo o roteiro do meu missivista, pessoa idônea e afetivamente ligado a Vinicius. Já lançado com sucesso na música popular, tendo feito shows no Rio, ele preferia continuar a vida de show-business e de compositor ao Itamaraty. Depois de 1965, a seu pedido, foi requisitado pelo governador de Minas, Israel Pinheiro, para ficar, sem ônus, à disposição da Fundação Ouro Preto, recém-fundada e dirigida por Murilo Rubião. O Itamaraty o cedeu, também sem ônus. O poeta prestou alguns serviços a Ouro Preto, onde se valia da casa de Scliar e da de Rodrigo M.F. de Andrade.

Dois anos depois, pelo menos, esgotada a requisição, Vinicius ou voltava ao Itamaraty ou teria de se aposentar. Nascido em 1913, em 1968 tinha 55 anos. Nessa altura sobreveio o AI-5, 1968. Vinicius esteve longamente em Lisboa, onde já tinha se apresentado em um show ao lado de Chico Buarque. Já tinha se apresentado também em Roma, em São Paulo e no Rio. Entre “alcoólatras, pederastas e subversivos”, então afastados da carreira. Vinicius teria sido “vagamente enquadrado nessa última categoria”. Se foi, o nome dele consta de lista dos aposentados e punidos pelo AI-5 em ato que, segundo o ritual autoritário, seria assinado pelo presidente e por ministros. O arquivo do Itamaraty deve ter o registro desse memorando ou de qualquer papel de igual teor entre presidente e chanceler.

“Até onde me lembro”, diz o missivista, cujo nome prefiro não revelar, “o Vinicius não quis voltar ao Itamaraty, como a lei exigia, para tentar ser conselheiro, na época só título. Tinha decidido a continuar a carreira de compositor e show-man, apesar dos amigos que tinha na carreira diplomática e que sempre lhe foram fiéis”. O poeta, acrescenta, não precisa ter ampliado seu charme irresistível com heroísmo “fundado numa grosseria”, a qual Costa e Silva provavelmente não cometeria, nem Magalhães acolheria.

Pelo que sei e o aide-mémoire me fez recordar, Vinicius recebeu a carta-telegrama do Ministério do Exterior comunicando sua aposentadoria quando se achava em Lisboa e não a bordo do navio Eugênio C., nem é provável que tenha chorado na ocasião. A versão acolhida por Ruy Castro foi várias vezes repetida, mas nunca foi objeto de pesquisa, que poderia envolver perguntas ao ex-ministro, aos antigos secretário-geral, chefe de gabinete e chefe do D.A e mais simplesmente com uma consulta ao maço de Marcos Vinicius da Cruz de Moraes, o nome inteiro do poeta e diplomata.

(Texto da Coluna do Castello, de Carlos Castello Branco,
novembro de 1990)

Segunda versão
  
Ainda sobre a cassação de Vinicius de Moraes


Recebi esta carta da irmã de Vinicius de Moraes,
Laetitia C. de Moraes Vasconcellos:

“Antecipando-se à carta que eu estava por enviar-lhe com relação à primeira nota de sua coluna o JB sobre Vinicius, o Sr. Rui Castro retificou parte das informações publicadas a respeito da saída de Vinicius da carreira diplomática. Servirá esta, agora, para dar-lhe mais detalhes do que aconteceu, então.

Segundo o que o próprio Vinicius, meu irmão, relatou à minha irmã Lygia, antes mesmo da edição do AI-5, ele soubera, através de amigos no Itamaraty, que o presidente enviara a famosa nota ao então ministro Magalhães Pinto, vazada nos seguintes termos: 'Demita-se esse vagabundo'. Antes de prosseguir no assunto, devo explicar que, naquela época, eu trabalhava na FAO-Nações Unidas e tinha muito contato com o Itamaraty, onde nunca encontrava Vinicius. Por isso, em certa ocasião, perguntei-lhe por que não comparecia regularmente a Casa, e sua resposta foi: 'Já me apresentei três vezes (depois de sua volta do Uruguai) ao secretário geral para ser designado para alguma função. Nada foi feito e eu me recuso a ficar andando pelos corredores, sem nada para fazer e até sem ter mesa e cadeira para mim.'

De acordo com um amigo de Vinicius na Casa (leia-se Itamaraty), a quem o ministro transmitira o recado e pedira o levantamento da carreira dele, foi feito um relatório em que se destacara a atuação de Vinicius em Paris (onde a casa dele era considerada como que uma segunda Embaixada do Brasil e de onde, através de sua amizade com Sacha Gordine, nascera o projeto e o filme Orfeu do Carnaval) bem como o quanto ele fizera no Uruguai para divulgar a cultura e a música popular brasileira. No Uruguai, pude eu mesma constatar, quando meu marido foi ali designado como embaixador do Brasil no período de 1971 a 1974, a marca da presença de Vinicius no plano cultural e as inúmeras amizades que havia conquistado quando ali esteve como cônsul brasileiro nos idos de 1960. Eu costumava dizer a Arnaldo, meu marido, que me dava mais prestígio em Montevidéu ser irmã de Vinicius do que, propriamente, ser embaixatriz.

Pelo que soube por Lygia (eu me encontrava, então, com meu marido, em posto, no Egito), o presidente lera o relatório e o deixara de lado para decisão futura. Infelizmente, e a despeito dos serviços prestados ao país, o presidente teve por bem, eu diria por mal, cassar Vinicius, demitindo-o da carreira. A notícia chegou-lhe através de um amigo diplomata, quando ele, Vinicius, se encontrava em casa de minha mãe, já falecida, e habitada por Lygia. Vinicius ficou muito abatido, pois gostava da carreira, mas não chorou não. Naquele mesmo dia, recebeu telefonemas de dois amigos, Lauro Escorel e Carlos Jacinto de Barros, que lhe vieram hipotecar solidariedade.

No que diz respeito à volta dele à carreira, foi apenas por insistência de minha irmã, procuradora dele, que Vinicius, depois da anistia, permitiu que ela providenciasse sua reintegração ao Itamaraty (uma maneira, segundo ela, de limpar sua folha de serviços) e apresentou, logo a seguir, seu pedido de demissão.

Quanto à lenda (e há tantas sobre Vinicius) de ter recebido a notícia na banheira, deve-se, creio eu, ao fato de ele gostar de mergulhado a meio na água, escrever seus artigos e letras de música em máquina colocada sobre uma tábua atravessada na banheira. Era também assim que muitas vezes recebia alguns de seus amigos.

E pela (espero) última vez (já o fizemos tantas vezes), queria deixar claro que Vinicius é Vinicius de Moraes − e nada mais. Foi registrado como Marcus Vinicius por meu pai, tendo Vinicius, já no ginásio, abandonado o Marcus, conforme consta no livro próprio do Cartório do Registro, passando a assinar-se apenas Vinicius de Moraes (xerox da identidade dele anexo). A lenda, mais uma, de ele chamar-se Marcus Vinicius da Cruz de Mello Moraes deve-se a uma brincadeira, em verso, de Manuel Bandeira depois de saber que Vina (seu apelido de família) tivera inicialmente o nome de Marcus Vinicius e que ele descendia, por parte materna, da família Burlamaqui dos Santos Cruz e, do lado paterno, de Alexandre José de Mello Moraes, médico e historiador, pai de nossa avó. O Bandeira misturou essas informações e compôs esse nome, Marcus Vinicius da Cruz de Mello Moraes, que o persegue até hoje.

Espero que, com esta carta, fique esclarecido todo esse assunto e ponho-me, juntamente com minha irmã Lygia, à sua disposição para qualquer informação adicional.

Ao desculpar-me por carta tão longa, gostaria de dizer-lhe o quanto apreciamos, meu marido e eu, suas crônicas no JB, pela clareza e dignidade com que trata assuntos outros de tanta relevância para o Brasil. Sua admiradora sincera, Laetitia C. de Moraes Vasconcellos.”

(Da Coluna do Castello, de Carlos Castello Branco)

Governo repara cassação de Vinícius de Moraes
 como embaixador

“Promover o diplomata, poeta e compositor Vinícius de Moraes ao cargo de Ministro de Primeira Classe (embaixador) é um processo de reparação obrigatória, que não precisa de agradecimento algum por parte da família”, disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante cerimônia realizada, na noite desta segunda-feira (16.08.2010) no Palácio Itamaraty.

Emocionado, Lula disse que “possivelmente, quem teve a atitude de propor a cassação de Vinicius não tenha lido o poema Operário em Construção. Porque se ele tivesse lido, tal como o operário ele teria aprendido a dizer ‘não’ e não teria cumprido a aberração que foi colocar fim à carreira diplomática do Vinícius de Moraes”.

(...)

Vinícius foi aposentado compulsoriamente durante a ditadura militar, por meio do Ato Institucional n.º 5 (AI-5), em 1968. A lei sancionada por Lula, em junho passado, assegura aos atuais dependentes do poeta os benefícios da pensão correspondente ao cargo.

Lula ressaltou a preocupação de seu governo em reparar erros históricos e lembrou o brilhantismo de Vinícius como pessoa, poeta e diplomata: “Eu tenho dito aos meus companheiros de governo que, muitas vezes, no Brasil, nós esquecemos as pessoas que a gente gosta, deixamos de exaltar as pessoas que foram vítimas do período do autoritarismo. Aos poucos, a gente vai esquecendo de transformar os nossos heróis em heróis, porque nós não falamos deles”.




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