Como Vinicius de Moraes deixou o Itamaraty
Velho amigo do poeta Vinicius de
Moraes escreve-me para convocar-me a ajudá-lo a desfazer “versão fantasiosa”
sobre a maneira como o poeta se afastou, aposentado, do Itamaraty, em 1968. Ele
era primeiro secretário no serviço diplomático e, segundo a fantasia, teria
sido excluído da carreira por ordem do então presidente Arthur da Costa e Silva
transmitida em memorando dirigido ao ministro da Exterior da época, José de
Magalhães Pinto. O apelo que me foi feito relaciona-se com duas circunstâncias:
a de ter sido também amigo do poeta e por ser o “decano da reportagem
política”.
Enquanto se espera a abertura das
urnas para contagem dos votos, o dia se apresenta propício a que se tente a revisão
de um tema que poderá ser tratado sempre na base de uma versão que já está
consagrada em livro. Na
verdade, Ruy Castro, no seu festejado livro − “ Chega de Saudade − a
história e as histórias da bossa nova” −
a endossa, oferecendo-a como a verdade sobre o afastamento de Vinicius de
Moraes da carreira diplomática. Não tive tempo nem paciência, contudo, de ir ao
arquivo do Itamaraty, como sugere o missivista, para examinar o maço referente
ao nosso saudoso amigo.
Na página 408 da sua narrativa, diz
Ruy Castro: “ ʽAssunto: Vinicius de Moraes. Demita-se esse vagabundo. Ass.
Arthur da Costa e Silvaʼ. Com este grosseiro memorando ao chanceler Magalhães
Pinto, o marechal-presidente decretou a saída do poeta do corpo diplomático em
fins de 1968. Vinicius recebeu a notícia em alto-mar, a bordo da banheira de
sua cabine no navio Eugênio C. Chorou convulsivamente, porque adorava o
Itamaraty”.
Vamos à época e ao fato, segundo o
roteiro do meu missivista, pessoa idônea e afetivamente ligado a Vinicius. Já
lançado com sucesso na música popular, tendo feito shows no Rio, ele preferia
continuar a vida de show-business e de compositor ao Itamaraty. Depois de 1965, a seu pedido, foi
requisitado pelo governador de Minas, Israel Pinheiro, para ficar, sem ônus, à
disposição da Fundação Ouro Preto, recém-fundada e dirigida por Murilo Rubião.
O Itamaraty o cedeu, também sem ônus. O poeta prestou alguns serviços a Ouro
Preto, onde se valia da casa de Scliar e da de Rodrigo M.F. de Andrade.
Dois anos depois, pelo menos,
esgotada a requisição, Vinicius ou voltava ao Itamaraty ou teria de se
aposentar. Nascido em 1913, em 1968 tinha 55 anos. Nessa altura sobreveio o
AI-5, 1968. Vinicius esteve longamente em Lisboa, onde já tinha se apresentado
em um show ao lado de Chico Buarque. Já tinha se apresentado também em Roma, em São Paulo e no Rio. Entre
“alcoólatras, pederastas e subversivos”, então afastados da carreira. Vinicius
teria sido “vagamente enquadrado nessa última categoria”. Se foi, o nome dele
consta de lista dos aposentados e punidos pelo AI-5 em ato que, segundo o
ritual autoritário, seria assinado pelo presidente e por ministros. O arquivo
do Itamaraty deve ter o registro desse memorando ou de qualquer papel de igual
teor entre presidente e chanceler.
“Até onde me lembro”, diz o
missivista, cujo nome prefiro não revelar, “o Vinicius não quis voltar ao
Itamaraty, como a lei exigia, para tentar ser conselheiro, na época só título.
Tinha decidido a continuar a carreira de compositor e show-man, apesar dos
amigos que tinha na carreira diplomática e que sempre lhe foram fiéis”. O
poeta, acrescenta, não precisa ter ampliado seu charme irresistível com
heroísmo “fundado numa grosseria”, a qual Costa e Silva provavelmente não
cometeria, nem Magalhães acolheria.
Pelo que sei e o aide-mémoire me fez
recordar, Vinicius recebeu a carta-telegrama do Ministério do Exterior comunicando
sua aposentadoria quando se achava em Lisboa e não a bordo do navio Eugênio C.,
nem é provável que tenha chorado na ocasião. A versão acolhida por Ruy Castro
foi várias vezes repetida, mas nunca foi objeto de pesquisa, que poderia
envolver perguntas ao ex-ministro, aos antigos secretário-geral, chefe de
gabinete e chefe do D.A e mais simplesmente com uma consulta ao maço de Marcos
Vinicius da Cruz de Moraes, o nome inteiro do poeta e diplomata.
(Texto da Coluna do
Castello, de Carlos Castello Branco,
novembro de 1990)
Segunda versão
Ainda sobre a cassação de Vinicius de Moraes
Recebi esta carta da
irmã de Vinicius de Moraes,
Laetitia C. de Moraes Vasconcellos:
Laetitia C. de Moraes Vasconcellos:
“Antecipando-se à carta que eu estava por enviar-lhe com relação à primeira nota de sua coluna o JB sobre Vinicius, o Sr. Rui Castro retificou parte das informações publicadas a respeito da saída de Vinicius da carreira diplomática. Servirá esta, agora, para dar-lhe mais detalhes do que aconteceu, então.
Segundo o que o próprio Vinicius, meu irmão, relatou à minha irmã Lygia, antes mesmo da edição do AI-5, ele soubera, através de amigos no Itamaraty, que o presidente enviara a famosa nota ao então ministro Magalhães Pinto, vazada nos seguintes termos: 'Demita-se esse vagabundo'. Antes de prosseguir no assunto, devo explicar que, naquela época, eu trabalhava na FAO-Nações Unidas e tinha muito contato com o Itamaraty, onde nunca encontrava Vinicius. Por isso, em certa ocasião, perguntei-lhe por que não comparecia regularmente a Casa, e sua resposta foi: 'Já me apresentei três vezes (depois de sua volta do Uruguai) ao secretário geral para ser designado para alguma função. Nada foi feito e eu me recuso a ficar andando pelos corredores, sem nada para fazer e até sem ter mesa e cadeira para mim.'
De acordo com um amigo de Vinicius na Casa (leia-se Itamaraty), a quem o ministro transmitira o recado e pedira o levantamento da carreira dele, foi feito um relatório em que se destacara a atuação de Vinicius em Paris (onde a casa dele era considerada como que uma segunda Embaixada do Brasil e de onde, através de sua amizade com Sacha Gordine, nascera o projeto e o filme Orfeu do Carnaval) bem como o quanto ele fizera no Uruguai para divulgar a cultura e a música popular brasileira. No Uruguai, pude eu mesma constatar, quando meu marido foi ali designado como embaixador do Brasil no período de
Pelo que soube por Lygia (eu me encontrava,
então, com meu marido, em posto, no Egito), o presidente lera o relatório e o
deixara de lado para decisão futura. Infelizmente, e a despeito dos serviços
prestados ao país, o presidente teve por bem, eu diria por mal, cassar
Vinicius, demitindo-o da carreira. A notícia chegou-lhe através de um amigo
diplomata, quando ele, Vinicius, se encontrava em casa de minha mãe, já
falecida, e habitada por Lygia. Vinicius ficou muito abatido, pois gostava da
carreira, mas não chorou não. Naquele mesmo dia, recebeu telefonemas de dois
amigos, Lauro Escorel e Carlos Jacinto de Barros, que lhe vieram hipotecar
solidariedade.
No que diz respeito à volta dele à carreira, foi apenas por insistência de minha irmã, procuradora dele, que Vinicius, depois da anistia, permitiu que ela providenciasse sua reintegração ao Itamaraty (uma maneira, segundo ela, de limpar sua folha de serviços) e apresentou, logo a seguir, seu pedido de demissão.
Quanto à lenda (e há tantas sobre
Vinicius) de ter recebido a notícia na banheira, deve-se, creio eu, ao fato de
ele gostar de mergulhado a meio na água, escrever seus artigos e letras de
música em máquina colocada sobre uma tábua atravessada na banheira. Era também
assim que muitas vezes recebia alguns de seus amigos.
E pela (espero) última vez (já
o fizemos tantas vezes), queria deixar claro que Vinicius é Vinicius de Moraes −
e nada mais. Foi registrado como Marcus Vinicius por meu pai, tendo Vinicius,
já no ginásio, abandonado o Marcus, conforme consta no livro próprio do
Cartório do Registro, passando a assinar-se apenas Vinicius de Moraes (xerox da
identidade dele anexo). A lenda, mais uma, de ele chamar-se Marcus Vinicius da
Cruz de Mello Moraes deve-se a uma brincadeira, em verso, de Manuel Bandeira
depois de saber que Vina (seu apelido de família) tivera inicialmente o nome de
Marcus Vinicius e que ele descendia, por parte materna, da família Burlamaqui
dos Santos Cruz e, do lado paterno, de Alexandre José de Mello Moraes, médico e
historiador, pai de nossa avó. O Bandeira misturou essas informações e compôs
esse nome, Marcus Vinicius da Cruz de Mello Moraes, que o persegue até hoje.
Espero que, com esta carta, fique esclarecido todo esse assunto e ponho-me, juntamente com minha irmã Lygia, à sua disposição para qualquer informação adicional.
Ao desculpar-me por carta tão longa, gostaria de dizer-lhe o quanto apreciamos, meu marido e eu, suas crônicas no JB, pela clareza e dignidade com que trata assuntos outros de tanta relevância para o Brasil. Sua admiradora sincera, Laetitia C. de Moraes Vasconcellos.”
(Da Coluna do
Castello, de Carlos Castello Branco)
Governo repara cassação de Vinícius de Moraes
como embaixador
como embaixador
“Promover o diplomata, poeta e
compositor Vinícius de Moraes ao cargo de Ministro de Primeira Classe
(embaixador) é um processo de reparação obrigatória, que não precisa de
agradecimento algum por parte da família”, disse o presidente Luiz Inácio Lula
da Silva durante cerimônia realizada, na noite desta segunda-feira (16.08.2010)
no Palácio Itamaraty.
Emocionado, Lula disse que
“possivelmente, quem teve a atitude de propor a cassação de Vinicius não tenha
lido o poema Operário em
Construção. Porque se ele tivesse lido, tal como o operário
ele teria aprendido a dizer ‘não’ e não teria cumprido a aberração que foi
colocar fim à carreira diplomática do Vinícius de Moraes”.
(...)
Vinícius foi aposentado
compulsoriamente durante a ditadura militar, por meio do Ato Institucional n.º 5 (AI-5), em 1968. A lei sancionada por
Lula, em junho passado, assegura aos atuais dependentes do poeta os benefícios
da pensão correspondente ao cargo.
Lula ressaltou a preocupação de
seu governo em reparar erros históricos e lembrou o brilhantismo de Vinícius como
pessoa, poeta e diplomata: “Eu tenho dito aos meus companheiros de governo que,
muitas vezes, no Brasil, nós esquecemos as pessoas que a gente gosta, deixamos
de exaltar as pessoas que foram vítimas do período do autoritarismo. Aos
poucos, a gente vai esquecendo de transformar os nossos heróis em heróis,
porque nós não falamos deles”.
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