O filme que usou a
Segunda Guerra Mundial como pano de fundo para uma das histórias de amor mais
lembradas do cinema completa 70 anos* ainda jovem em nossa memória coletiva.
*Abril de 2002
Por Carol Almeida
Mesmo que por algum desleixo
cinematográfico você não tenha visto Casablanca,
tenha certeza de que, sim, você já viu Casablanca.
Seja como um cartaz de fundo de cena estampando Humphrey Bogart e Ingrid
Bergman (foto acima), no título de algum filme ou em frases de vários diálogos
do cinema, da TV e da literatura, referências dessa produção foram recicladas
bem diante de seus olhos em diversos momentos da sua vida. E muitas vezes, sem
se dar conta, lá estava você escutando os ecos de um triângulo amoroso que
completa agora seus jovens 70 anos. (vide asterisco acima)
A história dessa miniquadrilha
drummondiana do Victor que amava Ilsa que amava Rick que amava a si próprio
(mas também amava Ilsa e, de certa forma, Victor) se mostra cada vez mais
vigorosa em suas imagens icônicas e sobretudo nas frases de efeito disparadas
quase que em velocidade de metralhadora durante a trama. E como todo bom
clássico, ainda carrega na bagagem um sem número de curiosas histórias de
bastidores que amplificam ainda mais sua perenidade e seus status de cult. Mas
se estamos cientes de seu lugar no Olimpo dos filmes que catalisam memórias
coletivas, é preciso entender por que exatamente ele chegou ali.
O drama de homens e mulheres tentando
fugir da ocupação alemã na Europa foi exibido em plena Segunda
Guerra Mundial e, portanto, havia algo de documental e
assustadoramente atual quando, no dia 26 de novembro de 1942, em Nova York , a primeira
projeção do filme foi desvelada ao público. A lembrar que a Paris onde Rick
(Bogart) e Ilsa (Bergman) se apaixonaram quando os alemães tomaram a cidade –
eles vestiam cinza e ela vestia azul – só seria desocupada pelos nazistas em
1944. Havia algo de urgente no roteiro do filme que se readaptava a cada dia,
quase como uma novela que vai navegando para onde o vento soprar.
O drama é inspirado na peça Everybody Comes To Rick′s, de Murray
Burnett e Joan Alison, mas ganhou outros contornos quando chegou aos irmãos
Epstein, Hal Wallis, Howard Koch e Casey Robinson, com direção de Michael Curtiz.
Juntos, eles criaram a história de Rick e Ilsa, que encontram e se apaixonam em
Paris, e tudo vai bem até o dia em que os alemães avançam pela cidade – “Isso
foi uma bala de canhão ou meu coração batendo?”, perguntava Ilsa. Ao som do
piano de Sam (Dooley Wilson), Rick sugere que eles fujam da cidade juntos e ela
promete encontrá-lo no dia seguinte na estação de trem. Mas na hora marcada
para a viagem Ilsa não aparece. Os dois só vão se reencontrar em Casablanca,
onde Rick agora é proprietário de um bar e Ilsa é casada com Victor Laszlo
(Paul Henreid), um herói da resistência aos nazistas.
→ Acima, Humphrey Bogart, Claude
Rains, Paul Henreid e Ingrid Bergman na cena em que Rick finalmente revê
Ilsa, agora acompanhada do marido, Victor Laszlo. Abaixo, Rick, Ilsa e o
pianista Sam (Dooley Wilson) planejam a fuga de uma Paris que será ocupada
pelos nazistas, mas ela já teme o pior.
A várias mãos, a história ia sendo
reescrita enquanto a guerra se desenrolava. E foi ironicamente essa premência e
necessidade de ser atual que lhe conferiu imortalidade. Justo porque não tinham
tempo, os roteiristas fizeram uma colagem de clichês e arquétipos do próprio
cinema. E assim o filme foi se transformando num Frankenstein que deu certo.
Muito certo.
Em um ensaio sobre o clássico,
Umberto Eco observa esse fenômeno da seguinte forma: “Casablanca se tornou um cult
porque ele não é um só filme. Ele é filmes. E essa é a razão pela qual ele
funciona, a despeito de qualquer teoria estética”. Segundo Eco, a grande
virtude é essa estranha e bem-sucedida combinação de modelos já sedimentados em
nosso imaginário.
Exemplos não faltam. Casablanca, a
cidade do Marrocos que no filme serve de ponto estratégico para que os fugitivos
da guerra possam embarcar para Lisboa e de lá para os Estados Unidos, seria uma
espécie de purgatório de onde ninguém consegue sair. As cartas de trânsito que
Rick esconde em seu bar representaria a “chave mágica” para fugir desse
purgatório e o próprio bar de Rick encerra nele uma série de elementos
arquetípicos, como o “inferno” da mesa de apostas, o clima de bordel ao redor
do piano de Sam, que é, ao mesmo tempo, o “paraíso” dos foragidos. Sem
mencionar que o filme consegue a proeza de ser simultaneamente um título que
congrega quase todos os gêneros hollywoodianos: drama, comédia, ação, suspense
e romance.
“Todo mundo vai para o Rick′s”
→ Acima, sem que ninguém note,
Rick esconde as preciosas cartas de trânsito sobre o piano de Sam; abaixo, vemos
Michael Curtiz dirigir a clássica cena final do drama, quando Rick avisa Ilsa
que decidiu não embarcar no voo para Lisboa, deixando-a partir com o marido,
Victor Laszlo.
Deuses distantes
“Talvez o poder milenar que o mito
exerce na vivência humana possa ser o responsável maior pela sobrevivência de Casablanca no imaginário geral. Mesmo quem
ainda é noviço na contemplação do cinema tem suas atenções reviradas e
desconhecidos instintos reavivados à simples menção da palavra Casablanca”, acredita
o crítico de cinema Cid Nader. Segundo ele, o filme se sustenta muito desse
culto aos “deuses” de Hollywood, neste caso corporificados nas expressões duras
de Humphrey Bogart, que acabara de filmar o sucesso Relíquia Macabra, e no rosto de porcelana e voz grave da sueca
Ingrid Bergman, que aos 27 anos tinha na América uma carreira que começava
ascender em vertiginosa escalada (na contramão de outra diva sueca, Greta
Garbo, que nesse momento se isolava de Hollywood).
“Dentre todos os que reagem à
lembrança da história ou da falsa fala ʽPlay it Again, Samʼ, é possível dizer
que a maioria nunca tenha visto o filme na íntegra. Talvez as questão possa ser
compreendida por conta da apropriação de alguns significados da mitologia (e da
importância das figuras “fabulares” na conformação da mente) por parte de
Hollywood: uma espécie de ʽAsgardʼ moderna onde seus deuses e seres espantosos
(astros e estrelas) residiam, contemplando a nós, pobres mortais”, sustenta
Nader.
Um desses mortais, seduzido pelo drama
e contexto histórico do filme, foi o jornalista e sociólogo Luiz Roberto da
Costa Júnior, que, não contente em apenas falar do filme, lançou em 2010 o
livro Casablanca – Política, História e
Semiótica no Cinema (All Print editora), reunindo algumas curiosidades da
trama, incluindo aí a ligação de seu roteiro a um jogo de xadrez e a aspectos
da numerologia. “Acho que as grandes virtudes do filme estão na interpretação
dos personagens e principalmente naquela coisa de que eles estão sempre no
limiar de tomar decisões sem saber ainda o que fazer. Essa incerteza coletiva,
que reflete o espírito que o mundo vivia naquele momento, foi o que colocou o
filme em relevo”, opina.
Fundamentos semióticos, históricos e
mitológicos à parte, o fato é que Casablanca
é, acima de tudo isso, um filme consensualmente bem realizado. Custou módicos –
para os padrões atuais – US$ 1 milhão, sendo US$ 33,667 de Bogart e US$ 25 mil
de Bergman, e levou três estatuetas do Oscar: melhor filme, melhor diretor para
Michael Curtiz e melhor roteiro adaptado (e deveria ter levado também pela
trilha sonora brilhante, cheia de inovadoras mixagens, do mestre Max Steiner).
Porém, muito mais do que esse
reconhecimento formal, Casablanca
merece seu lugar entre os grandes clássicos de Hollywood porque cravou em nossa
memória, cenas e situações que até hoje perduram quando o nome do filme se
projeta na nossa frente. “Dessa história fabular, com ʽdeusesʼ agindo num
momento de temor ante o destino que aparecia como trágico, em pleno 1942,
restou uma marca indelével, que se transfere pelas gerações”, pontua Nader.
São gerações que ainda têm o filme
como um marco – vivido ou adquirido – do chamado cinema de ouro hollywoodiano,
mas que, sobretudo, lembram do longa-metragem como uma clássica história de
amor. E olha que estamos falando de uma em que o final é infeliz. Porque para
os padrões moralistas da América não se poderia conceber a ideia de que uma
mulher traísse seu marido (para ficar com o homem de sua vida). Ficou apenas o
consolo de que Rick, Ilsa e todos nós sempre teremos Paris.
(Texto de Monet – A
Revista da NET, abril de 2002)
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