Pé na cova
Nunca fui de colecionar objetos de
forma obsessiva e sistemática. Ao contrário da maioria dos meus colegas de
infância e adolescência, não me rendi à tentação de juntar, com desvelo,
flâmulas, postais, estampas Eucalol, selos, moedas e caixas de fósforo.
Guardei, sim, um monte de gibis, revistas e recortes, preferindo investir meu
tempo e minha energia em algo que, se bem praticado, pode ser, segundo Walter
Benjamin, uma arte: fazer anotações. Escrever é fácil, difícil é fazer
anotações. (Esta eu anotei de memória, saindo quentinha da boca do Ivan Lessa.)
Se vício de jornalista, não sei, pode ser. O fato é que, desde a mais tenra
idade, eu anoto. Não tudo, mas um bocado de um bocado de coisas, que mais cedo
ou mais tarde eu acabo compartilhando com vocês. Hoje, por exemplo, vou
compartilhar com vocês a minha coletânea de últimos suspiros. Sim, eu poderia
ter escolhido outro tema – as grandes gafes da história, as mais hilariantes
mancadas do cinema, da ciência e da locução esportiva, as mais ridículas rimas
da poesia, os mais fulminantes passa-foras de todos os tempos, as primeiras e
últimas frases mais brilhantes da literatura, os trechos mais pernósticos e
obscuros da sociologia e da teoria literária, as mais estapafúrdias desculpas
de gente famosa para não tomar banho todo dia, etc. – mas, em homenagem a
finados, optei pelas derradeiras palavras comprovadamente pronunciadas por
figuras famosas em seu leito de morte.
Por ordem de entrada em cena, ou
melhor, de saída de cena, Sócrates é o primeiro da lista. Ao abrochar a clâmide
(naquele tempo, 399 a .C.,
não se abotoava o paletó ainda), ele disse a Crito: “Eu devo um galo e
Esclépio; você vai se lembrar da dívida?”. Tamanha insipidez só ganhou
posteridade por ser antiquíssima e socrática. Sabe-se que Platão morreu (em 347, a .C.) agradecendo ter
nascido homem, grego e no século de Péricles, mas ninguém anotou sua lapidar
despedida, se é que de fato foi lapidar. Tão lapidar quanto a de Nero (68
d.C.): “Que grande artista morre dentro de mim!”. Também há controvérsias sobre
as últimas palavras de Rabelais (1553). Uns dizem que foi “Estou indo para o
grande talvez”. Prefiro a outra: “Desçam as cortinas, a farsa acabou.”
Rosseau e Voltaire morreram no mesmo
ano (1778). O primeiro despediu-se mais, digamos, pomposamente (“Vou ver o pôr
do sol pela última vez.”) do que o segundo (“Me deixem morrer em paz!”). Mas
não tanto quanto Diderot, que ao bater as botas, seis anos depois, parecia
estar no meio de uma conferência e não com o pé na cova. “O primeiro passo rumo
à filosofia é a incredulidade.”, pontificou o enciclopedista, e em seguida
apagou. Dos poetas ingleses do século XIX, nenhum, nem mesmo o exuberante
Byron, esticou as canelas tão teatralmente quanto o tuberculoso John Keats
(1821). Nos braços do pintor Joseph Severn, ouvindo uma sonata de Brahms,
balbuciou: “Graças a Deus ela chegou. Já sinto as flores crescendo em cima de
mim.” Byron apenas anunciou, em 1824, que ia ou tinha de dormir – e nunca mais
acordou.
A despedida de Goethe (1832), citada
a torto e a direito, talvez seja a mais célebre de todas: “Mais luz!”, pediu
ele, súplica que o escritor americano O. Henry repetiria 78 anos depois:
“Ascendam as luzes! Eu não quero ir pra casa no escuro.” Outro alemão, Hegel,
que desencarnou um ano antes de Goethe, também deu um show, sobretudo de
niilismo: “Só um homem conseguiu me entender… e ele não me entendeu direito.”
Não foi menos incrédulo que o farewell, de James Joyce (1941): “Será que ninguém
me entende?” – se é que eu entendi o sentido da frase original: “Does nobody
understand?”.
Em matéria de desespero, raros
defuntaram como Edgar Allan Poe (1849), segundo alguns, implorando que Deus
tivesse pena de sua “pobre alma”, e, segundo outros, rogando a um amigo que lhe
estourasse os miolos com uma pistola. O escritor Hector Hugh Munro, vulgo Saki,
nem precisou implorar por um tiro, já que morreu do balaço de um
franco-atirador durante a Segunda Guerra Mundial. Suas últimas palavras?
“Apague a porcaria desse cigarro”. O franco-atirador estava fumando, na
escuridão da noite.
O historiador e filósofo escocês
Thomas Carlyle (1881) desdenhou a morte: “Então morrer é assim? Ora…” – e mais
não disse. Algo parecido murmurou Henry James antes de bafuntar, em 1916:
“Então é isso, enfim, as coisas distintas…”. T. T. Barnum, o mais célebre dono
de circos e mafuás do mundo, nem se deu conta de que estava prestes a bater o
prego. Numa noite de 1891, perguntou: “Como foi a venda de ingressos hoje no
Madison Square Garden?”, e entregou sua alma a Deus. Oscar Wilde provou até o
fim (1900) que era um frasista de gênio: pediu champanhe, disse que estava
morrendo como sempre vivera, além de suas posses, e empacotou. Tolstoi (1910)
expirou perguntando sobre como morriam os camponeses e D. H. Lawrence (1930)
dizendo para a enfermeira que estava se sentindo melhor. Bernard Shaw (1950)
não se deixou enganar e sobre a enfermeira que dele cuidava despejou a seguinte
imprecação: “Você está tentando me manter vivo como uma curiosidade, mas eu
acabei, estou no fim, estou morrendo!”. Estava mesmo.
José Veríssimo, um dos seis amigos
que acompanharam os últimos minutos de Machado de Assis (1908), jura que o
bruxo do Cosme Velho comentou que “a vida é boa” antes de dar seu último
suspiro. Por muito tempo pensei que Graciliano Ramos (1953) tivesse ido desta
pra melhor passando a mão no rosto de sua mulher, Heloísa, e murmurando
“Mamãezinha...”, mas um recém-biógrafo assegura que suas derradeiras palavras
foram “Estou acabado...”. Sérgio Porto (1968) apagou pedindo à empregada de sua
mãe que não olhasse pra ele, prova de que nem todo humorista morre fazendo
piada. José do Patrocínio Filho era um tremendo gozador e nem quando esticou o
pernil, em 1929, franziu o cenho. Condenado pelos médicos a tomar leite humano,
pois mais nada o apetecia, à primeira demonstração de dificuldade da enfermeira
para por numa colherzinha o leite extraído dos alvos e belos seios de uma
ama-seca, Zeca abriu um olho e sugeriu: “Doutor, não é melhor eu mamar?” – e
nem sequer para mamar abriu mais a boca.
Texto de Sérgio
Augusto:
Revista Bundas número 21, novembro de 1999.
Aprende-se sempre em qualquer lugar e em qualquer
circunstância
Conta-se que Luiz Vaz de Camões,
poeta e grande literato da língua portuguesa, era tido como o que sabia de tudo
na face da Terra, por sua vida nômade e repleta de aventuras. Quando em seu
leito mortuário, faltava-lhe uma vela, instrumento que, certamente serviria
para iluminar sua alma prestes a alçar voo em busca do mundo espiritual.
Corre-se para lá... corre-se para cá... e nada da vela. Quando todos,
desesperados, vislumbravam a partida do poeta sem a devida luminosidade
salvadora, eis que surge uma velha senhora “pitando” seu cachimbo, se aproxima
de Camões, pega-lhe a mão trêmula, e, num gesto suave, deposita as brasas de
seu cachimbo na palma da mão do poeta, ao mesmo tempo em que, com um vibrante
sopro, faz surgir uma tênue luz tão necessária à condução daquela pobre alma ao
encontro de seu Criador. Camões, ao ver semelhante e inusitado acontecimento,
levantado lentamente a cabeça, olha para os presentes e, proferindo suas
últimas palavras, diz:
- É...
Camões morrendo... Camões aprendendo.
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