segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Dyonelio Machado



(Quarai, RS, 1895 − Porto Alegre, RS, 1985)

Publicado há 90 anos, o livro de contos “Um Pobre Homem”, que marcou a estreia de Dyonélio Machado, está ganhando uma reedição. A neta do escritor escreveu a apresentação do volume, em texto que ZH (de 23.12.2017) reproduz a seguir.

Meu Vô

Por Andréa Soler Machado*

Sou neta do Dyonélio Machado. Sei disso desde pequena, porém, só ao longo da minha vida é que fui entendendo a delícia e a dor dessa genealogia. Escritor famoso, político importante, presidiário comunista, maldito, odiado, amado e sempre verdadeiro. E o melhor, antes de tudo, meu vô: o primeiro a me pegar no colo, a apreciar meus desenhos, a me oferecer um copo de vinho, a me indicar os clássicos da literatura e, mesmo hesitante, a me emprestar um livro de orientação sexual.

Nossa amizade surgiu da vivência, não da literatura. Contar coisas nossas beira intimidade e talvez não interesse a muita gente, mas é isso que revela e humaniza o personagem autor de Os Ratos (1935).

Quero crer que sempre fui sua neta preferida, já que preferência é afinidade, empatia, algo que se sente, que não tem explicação. Comigo ele conseguia ser criança. Eu adorava as suas travessuras. Enquanto uns se entediavam com sua declamação de poemas em algum almoço de família, eu babava. E, quando tudo estava chato, nos refugiávamos, eu e ele, na cozinha e conversávamos com as empregadas.

Como ele gostava de plateia para narrar suas histórias, eu era a melhor companhia, e também testemunha e cúmplice de suas proezas de artesão. Lembro-me muito bem daqueles dedos longos restaurando livros antigos. “Mequinha, sabes que fui encadernador?” Era esse meu apelido, entre nós apenas, pois nunca tive apelidos; aliás, odeio apelidos, mas desse eu gostava, e até hoje desconheço se tem algum significado.

Mais tarde soube que esses mesmos dedos esculpiram, lá nos anos 1930, no cárcere político, peças de um jogo de xadrez em cabos de vassoura, relíquia que segue guardada em um saquinho feito com um pedaço de uniforme listrado de presidiário e que consegui resgatar recentemente com uma prima. Dedos que me ensinaram a embaralhar cartas de uma forma diferente – ele apreciava jogar truco −, técnica que somente quando tive mãos de adulta pude realmente colocar em prática.

Nos fundos da casa da praia do Imbé tinha uma casinha amarelinha, uma espécie de oficina, batizada Vila Andrea... Eu amava isso, era uma homenagem! E demorou anos até eu descobrir Palladio – Andrea di Pietro della Gondola −, na faculdade de Arquitetura, e entender o sentido da villa. Na vila Andrea havia tudo o que precisávamos para montar uma pandorga: ferramentas, varetas e papéis de seda coloridos. Sim, ele fazia e empinava pandorgas.

E as ironias? Hilárias para mim. “Inglês não interessa muito, português é uma língua obscena, aprenda francês.” Obedeci.

Futricando sua mesa de trabalho, que na época se chamava birô (“bureau”, em francês), descobri as fotos! Muitas fotos de fachadas e vistas de Porto Alegre, lindas, registros de longas caminhadas. Será que nasceu daí minha paixão pela arquitetura... e pelas caminhadas?

Os Ratos traduz essa visão cinematográfica, a vida em movimento, ao descrever imageticamente a perambulação pela floresta urbana, barulhenta, labiríntica, de céu recortado, inferno e paraíso da civilização.

Meus 15 anos nos foram brindados com um poema: “Tens o silêncio no gesto, grande sinal de nobreza”. E logo veio a abertura política e a reedição de seus livros. O velho amigo então me outorgou o cargo de sua “base de massa”, uma convocação que, nessa época, eu ainda não sabia como honrar.

Quando defendi meu doutorado, escutei atentamente as observações da banca, mas recordando que ele contava que, em sua defesa, esbravejou para a plateia após comentários absurdos de um dos membros: “Ele não leu a tese!”. Esse era Dyonelio Machado!

Durante minha vida fui entendendo melhor sua faceta pública e também suas histórias pessoais, aquelas que realmente impulsionam o mundo e que desvendam o homem por trás do escritor, ou melhor, entranhado no escritor. As histórias do menino solitário do Quaraí, o início do namoro com minha avó, Adalgiza, companheira de toda a vida, que nunca perdia a elegância, nem mesmo quando tinha de ouvir: “Mequinha, que bom quando vens almoçar, só assim tem comida boa, porque, tu sabes, eu sou o bicho da casa”. E ele fazia cara de bicho. E ria.

A Adalgiza era pianista, lia, costurava, e preparava um doce de leite e uma massa inesquecíveis. Mas vivia mesmo era para ele. E, quando o Velho – assim ela carinhosamente o chamava – se foi, organizou as cartas, os manuscritos, tudo. Terminado o trabalho, deitou-se no sofá e se foi também.

Em minha família, as histórias vão sendo contadas aos poucos. E se misturaram às lembranças que tenho do meu vô.


*Arquiteta, doutora em História, professora da UFRGS.


Dyonélio Tubino Machado nasceu em Quarai, RS, em 21/08/1895. Político, médico escritor, jornalista e poeta, foi um dos expoentes da segunda geração do Modernismo no Brasil. Aos 12 anos já trabalhava no semanário O Quaraí, onde teve seus primeiros contatos com a imprensa. Em 1911 fundou um jornal com o titulo O Martelo, anunciando suas inclinações pelo comunismo. Em 1929 formou-se médico, foto abaixo, e ingressou na psicanálise, constituindo-se num dos responsáveis pela sua divulgação no Rio Grande do Sul. Em 1934 traduziu a obra Elementos de psicanálise, de Eduardo Weiss, livro fundamental na área.


O interesse pela literatura surge por esta época, tendo seu primeiro livro de contos – Um pobre homem – publicado em 1927. Sua obra não é vasta, porém é bastante significativa: Os ratos (1935), tido como sua obra-prima e O louco do Cati (1942) são romances enigmáticos estudados até hoje e considerados como clássicos da literatura brasileira. Sua obra foi apenas reconhecida tardiamente, tendo recebido destaque nos meios acadêmicos apenas a partir da década de 1990. O psicológico está bastante enraizado em sua obra, como deixam transparecer O louco do Cati e Os ratos.

Foi ainda um dos fundadores da Associação Rio-grandense de Imprensa (ARI) e, mais tarde, colaborador dos jornais Correio do Povo e Diário de Notícias, da capital gaúcha. Em 1946, com Décio Freitas, fundou o jornal Tribuna Gaúcha, porta-voz do Partido Comunista Brasileiro.


A militância política tornou-se uma extensão de suas atividades como médico e escritor. Membro dedicado do PCB, em 1935 foi acusado de atentar contra a ordem política e social ao trabalhar para a realização de uma greve de gráficos. Solto mediante sursis, voltou a ser preso no mesmo ano, por ocasião da Intentona Comunista. Suas posições ideológicas custaram-lhe dois anos de sua vida, passados em prisões políticas. Mas suas convicções de homem de esquerda não ficaram abaladas com estes fatos. Tanto é que, em 1947, com o PCB na legalidade, ele se elegeu deputado estadual pelo partido e se tornou líder da sua bancada na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. Outros livros: Desolação (1942), Passos perdidos (1946), Deuses econômicos (1966), Endiabrados (1980), Sol subterrâneo (1980), Fada (1981) e O estadista (1982). Faleceu em 19/06/1985

(Do Blog Tiro de Letra)


Dyonélio Machado na velhice


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