sexta-feira, 10 de novembro de 2017

O dia em que as torcidas da dupla Gre-Nal viraram uma só



Nestes tempos modernos, em que parte dos torcedores da dupla Gre-Nal parece envolvida com entusiasmo em uma disputa incansável para ver quem diminui mais os feitos do lado rival, seja a construção ou reforma de um estádio, a contratação ou venda de um jogador, as campanhas e os títulos, costumo lembrar – com uma inevitável ponta de nostalgia – daquele junho de 1972.


No foto acima, da esquerda para a direita, em pé: Espinosa (G), Schneider (I), Figueroa (I), Ancheta (G), Everaldo (G) e Carbone (I); agachados, na mesma ordem: Valdomiro (I), Tovar (I), Claudiomiro (I), Oberti (G) e Torino (G).

* (G) jogador do Grêmio e (I) jogador do Internacional.

Foi um dos raros momentos na história de mais de cem anos da rivalidade que as duas torcidas se uniram em torno de uma causa – e tudo porque um dos jogadores gaúchos, o lateral-esquerdo Everaldo, do Grêmio, foi o único dos tricampeões mundiais de 1970 não convocado por Zagallo para a Seleção Brasileira que disputaria e ganharia a Minicopa, pelos 150 anos da Independência do país, apenas 22 dias depois. Não houve vermelho nem azul naquele momento. Os mais jovens, que vivem esta época de rivalidade acirrada ainda mais pelas redes sociais, talvez tenham dificuldades de entender o que houve, mas a verdade é que as torcidas se uniram em um protesto único. Estavam inconformadas pela injustiça, encararam a decisão de Zagallo como um menosprezo ao futebol gaúcho e a um de seus personagens, e forçaram os dirigentes a exigir um jogo de desagravo. Com raiva, superlotaram o Beira-Rio (exatas 106.554 pessoas, recorde absoluto nos estádios gaúchos em todos os tempos) e assistiram a um dos jogos mais espetaculares que Porto Alegre já recebeu – aquele empate em 3 a 3 entre as seleções gaúcha e brasileira, em um dia 17 de junho de 1972, há 45 anos.

 Acabo de escrever “um dos mais espetaculares” e me dou conta de que, para mim, na época um jovem repórter com dois anos de carreira, nunca mais houve uma partida como aquela, por tudo o que representou. O ambiente de tensão dos dias que anteriores, a ansiedade, a corrida ao estádio, a multidão que tomou as vias de acesso, os gritos entusiasmados, a agitação e os preparativos nas redações, a certeza de que uma seleção gaúcha restauraria o orgulho ferido. A Seleção Brasileira, que não tinha nada a ver com tudo aquilo, pagou um duro preço pela insensibilidade do técnico e pela decisão temerária dos dirigentes da então CBD de aceitar o desafio para um amistoso naquelas condições. Foi vaiada – e odiada – por um bom tempo. Não tenho dúvidas de que aquele episódio abalou entre os gaúchos a imagem da Seleção e reduziu o fascínio que ela sempre representou para os torcedores. Ao menos, para os daqui.

O Beira-Rio urrava na noite daquele 17 de junho. A Seleção foi vaiada e xingada o tempo todo, mas os torcedores tinham orgulho especialmente de sua representação, treinada por Aparício Viana e Silva, misto de cronista esportivo e treinador. O Brasil, por exemplo, tinha uma zaga formada por Brito e Vantuir. Os gaúchos respondiam com o uruguaio Ancheta, um dos destaques da Copa do México, e com o chileno Elias Figueroa, que marcaria época no Inter e no futebol brasileiro. Lembro que parte da imprensa nacional dizia, com bom humor, que a Seleção teria de nacionalizar logo aqueles dois e arrumar um jeito de convocá-los para assim resolver as dificuldades de sua defesa. Na lateral-esquerda, Zagallo escalou Marco Antônio, que ele próprio afastara da equipe titular no Tri. Entre os gaúchos estava Everaldo, a razão central para o confronto do desagravo.

Toda aquela tensão explodiu em um grito único da multidão logo aos dois minutos, quando Carbone fez 1 a 0. Jairzinho empatou aos oito do segundo, Tovar desempatou para os gaúchos dois minutos depois, Paulo César Lima, o Caju, voltou a empatar aos 15, Claudiomiro marcou o terceiro para o Rio Grande do Sul aos 38 e Rivellino definiu tudo aos 40. Pelo tempo dos gols já dá para ter uma boa ideia sobre o ritmo eletrizante da partida. Uma seleção respondia logo à ação da outra. Não apenas isso. A cada gol da Seleção, os jogadores iam até a torcida, batiam no peito, gritavam, xingavam. Rivellino teve a reação mais forte ao marcar o terceiro, em uma jogada iniciada por Caju no meio-campo e que só não foi parada porque Aparício instruiu seus jogadores a evitar certas faltas no segundo tempo, já prevendo o nervosismo e o ambiente de conflito. Rivellino batia no peito com força, sem esconder a raiva, como se estivesse – ele e os companheiros que foram abraçá-lo – diante de uma torcida inimiga e não de brasileiros como eles. No fundo, estavam certos. Naquele dia, aos olhos dos torcedores gaúchos, corretamente ou não, eles eram inimigos a serem derrotados. Poucas vezes o regionalismo atingiu níveis como aqueles.

Nos dias atuais, um jogo como aquele dificilmente seria realizado – ao menos naquele ambiente. Por algumas razões. Os dirigentes da CBF não aceitariam um desagravo proposto por uma federação, não há mais traumas ou orgulhos feridos quando um jogador da dupla Gre-Nal não é convocado (as torcidas até ficam satisfeitas quando seus times não são desfalcados) e, principalmente, a Seleção Brasileira perdeu muito do charme de antigamente. Aquele foi um jogo histórico em um raro momento de união em que as torcidas deixaram o vermelho e o azul de lado. Pegaram uma bandeira única e foram para o estádio. Quem viu nunca mais esqueceu.

A ficha do grande jogo

Data: 17 de junho de 1972
Local: Estádio Beira-Rio, Porto Alegre
Árbitro: Robert Heliés (França)

Seleção Gaúcha 3

Schneider (Inter); Espinosa (Grêmio), Ancheta (Grêmio), Figueroa (Inter) e Everaldo (Grêmio); Carbone (Inter), Tovar (Inter) e Torino (Grêmio); Valdomiro (Inter), Claudiomiro (Inter) e Oberdi (Grêmio), depois Mazinho (Grêmio).

Técnico: Aparício Viana e Silva

Seleção Brasileira 3

Leão (Palmeiras), depois Sérgio (São Paulo); Zé Maria (Corinthians), Brito (Botafogo), Vantuir (Atlético-MG) e Marco Antônio (Fluminense); Clodoaldo (Santos), Piazza (Cruzeiro) e Rivellino (Corinthians); Jairzinho (Botafogo), Leivinha (Palmeiras) e Paulo César Lima (Flamengo).

Técnico:Zagallo

(Do blog do Mário Marcos)


P.S. Eu, Nilo Moraes, também assisti a esse jogo histórico no Beira-Rio. Quando Carbone fez o primeiro gol, o velho massagista Moura, do Inter, invadiu o campo e abraçou efusivamente o jogador. Depois, ele explicaria que Carbone nunca havia feito um gol em partidas, e prometeu que faria um para o massagista. Este disse que o abraçaria em qualquer circunstância. Foi o que ele fez..

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