Luís Fernando Veríssimo
O avião
sacudiu, e o homem pegou a mão da mulher sentada ao seu lado.
– Desculpe – disse o homem. – É
que eu...
– O senhor tem medo de voar, é
isso?
– É. Na verdade, medo não.
Pavor.
O homem continuava apertando a
mão da mulher. Ela disse:
– Acalme-se. Foi só uma
sacudida.
O avião deu outra sacudida. O
homem gemeu e pediu:
– Você pode me abraçar?
A mulher
relutou, mas concordou. Envolveu o homem nos seus braços.
– Obrigado – disse o homem. – Era o
que a mamãe fazia, quando eu era garoto e nós viajávamos de avião.
– Pronto,
pronto – disse a mulher. – Está tudo bem.
Outra sacudida.
– Eu posso agarrar o seu seio?
– pediu o homem.
– Meu seio?!
– Para me
lembrar da mamãe. Vai me dar mais segurança.
– Pode – disse a mulher,
abrindo a blusa para o homem segurar seu seio.
Nisso ouviu-se a voz da aeromoça
avisando que era para apertarem os cintos de segurança porque o avião estava
entrando numa zona de turbulência.
– Ai meu
Deus – disse o homem. E para a mulher: – Comece a tirar a roupa!
Metade
Fazia tempo que o Gordo Mário não aparecia
no bar. A turma estranhava. Que fim levara o Gordo Mário? Na certa, gordo
daquele jeito, tivera um enfarte. O que seria uma pena. O Gordo Mário era um
grande companheiro. Divertido. Sempre alegre. Sempre cheio de histórias. Não
podia ter morrido. Era tão popular e tinha tantos amigos que, se tivesse
morrido, todos já saberiam.
E o Gordo Mário realmente não tinha
tido um enfarte e morrido. Tanto não tinha que um dia reapareceu. Na verdade,
quem apareceu foi meio Gordo Mário. Um Gordo Mário magro, quase irreconhecível.
Contou que tinha feito uma dieta espetacular e perdido metade do seu peso.
Aliás, contou isto várias vezes, para quem quisesse e não quisesse ouvir. O
Gordo Mário não tinha outro assunto, só a dieta que o fizera perder a metade do
que era.
O consenso
no bar foi o seguinte: o Gordo Mário tinha perdido a metade errada.
Escolhas
Albert Camus disse que a única
questão filosófica é o suicídio. Surpreende que – tendo sido goleiro na sua
juventude argelina – Camus não tenha feito um adendo: as únicas questões
filosóficas são o suicídio e o pênalti. Este pensamento não passou pela cabeça
nem do Doninho, que ia bater o pênalti naquele final de jogo empatado, nem do
Marcão, goleiro do adversário.
Mas os dois estavam vivendo um
momento camusiano: dois homens diante da magnitude de uma escolha decisiva, de
uma escolha de vida ou morte que só depende deles, que não está nem escrita nem
preordenada nas estrelas. Doninho: finjo que vou chutar na direita, mas chuto
na esquerda, ou chuto na direita mesmo porque ele vai adivinhar que eu vou
fazer mesmo o que fingi que ia fazer, para enganá-lo.
A escolha é só minha, Deus não tem
nada a ver com isto. Marcão: escolho um lado e me atiro. Se acertar acertei, se
não acertar... De qualquer maneira, a escolha é só minha. Doninho corre para a
bola e chuta, e o conto termina aqui. Se a bola entra ou não, não é mais uma
questão filosófica.
Dois homens tramam um assalto.
- Valeu, mermão? Tu traz o
berro que nóis vamo rendê o caixa bonitinho. Engrossou, enche o cara de chumbo.
Pra arejá.
- Podes
crê. Servicinho manero. É só entrá e pegá.
- Tá
com o berro aí?
- Tá
na mão.
Aparece um
guarda.
- Ih,
sujou. Disfarça, disfarça...
O guarda
passa pelos dois, que fingem estar discutindo.
- Discordo terminantemente.
O imperativo categórico de Hegel chega a Marx diluído pela fenomenologia de
Feurbach.
- Pelo amor de Deus! Isso é
o mesmo que dizer que Kierkegaard não passa de um Kant com algumas sílabas a
mais. Ou que os iluministas do século 18...
O guarda se afasta.
- O
berro, tá recheado?
- Tá.
- Então
vamlá!
Desejável
- Meu
bem... Você está deslumbrante!
- Tudo
para você, querido.
- Esse
penteado...
- Fui a cabeleireiro e pedi
um corte novo para o meu maridinho me achar desejável. Fui ao maquiador e pedi
que me deixasse bem bonita e sexy para atrair meu maridinho. Comprei esta
camisola provocante para enlouquecer você.
- E
conseguiu, meu amor. Você está...
- Não
me toca senão estraga tudo!
O encontro
Um homem livra-se de todos os seus
bens materiais, abandona a família e vai viver no deserto. Leva o suficiente
para sobreviver no deserto durante um ano. Não fazendo nada, só olhando o sol
de dia e as estrelas à noite. Quer se encontrar com Deus e não quer nada à sua
volta. Nada que distraia sua atenção, nada que confunda sua visão no caso de
Deus aparecer. E o deserto é nada para todos os lados. Nada de horizonte a
horizonte.
Mas de tanto olhar o sol e examinar
os horizontes esperando ver Deus, o homem fica cego. É socorrido e levado para
um hospital numa cidade grande, e, incapaz de ver o que o cerca e distinguir o
sono da escuridão da cegueira, mergulha em si mesmo - e encontra Deus, que o
recebe com um "alô" amistoso.
- Eu
queria muito encontrá-lo - diz o homem.
- Eu
sei, eu sei.
- Fui
procurá-lo no deserto, despojado de tudo, livre da civilização...
- Pois
é, foi no lugar errado. Acontece muito. Eu estava aqui todo este tempo.
-
Esperei você em vão.
- Para dizer a verdade, não
gosto muito de lugares ermos. A gente começa a pensar demais, a se
autoquestionar... E a solidão? Prefiro lugares onde há gente e movimento. Bom é
civilização.
- Mas
ninguém se lembra de procurar você dentro de si.
- Pois é. Querem
espetáculo. Visões no deserto. Epifanias. Conversões cinematográficas. Não é o
meu estilo.
-
Mas...
- Vê
se dorme um pouco. Amanhã a gente conversa. Agora você sabe onde me encontrar.
O vento
Uma porta bateu no fundo da casa,
acordando a velha que cochilava na sua cadeira de balanço.
- Que
foi isso? – perguntou a velha.
- Foi
o vento, vovó.
A velha
fechou os olhos outra vez e resmungou:
-
Mal-educado
O filho da cidade
Grande alvoroço em Tenente Abreu. Dera
no jornal: filho da cidade ferido no Afeganistão. Tenenteabreusense atingido
por uma bala no pé. Quem era e o que estava fazendo no Afeganistão? Ninguém
sabia. Chegou uma equipe da Globo na cidade para entrevistar parentes e amigos,
talvez antigas namoradas, do brasileiro ferido. Não encontrou ninguém que se
lembrasse dele. Não seria o filho do barbeiro, aquele que emigrara para os
Estados Unidos? Ele talvez tivesse se alistado no exército americano. O próprio
barbeiro negou. Seu filho Jorge trabalhava numa pizzaria em Nova York e nunca
chegaria perto do Afeganistão. Foram procurar no registro de nascimentos. Lá
estavam o nome dele – Jorge Souza Alvarenga – e do pai, Pedro, e da mãe, Dulce.
Mas ninguém se lembrava nem do pai nem da mãe. Havia um Pedro Alvarenga na
cidade, mas este nunca se casara e suspeitava-se até que fosse um pouco gay.
Começaram a surgir rumores. Jorge e sua família teriam saído de Tenente Abreu
quando ele ainda era criança. Jorge se ferira numa ação heroica e seria
condecorado pelos americanos. Jorge era casado com uma americana, possivelmente
uma modelo. Alguns já especulavam sobre como seriam a mulher e os filhos do
herói, todos loiros.
O noticiário do Afeganistão não
ajudava. Dava poucos detalhes sobre o ocorrido. Só dizia que Jorge perdera o
pé, estava bem, mas continuava hospitalizado. Nasceu um movimento na cidade:
trazer Jorge para Tenente Abreu. Se não como uma volta a casa, como uma
passagem triunfal pela sua cidade natal. Um desfile em carro aberto pela
Voluntários da Pátria, com a mulher e os filhos loiros, exibindo a sua medalha,
seguido de uma recepção na prefeitura. Houve até quem sugerisse que se mudasse
o nome da cidade, de Tenente Abreu para Jorge Alvarenga. Ou, se por uma feliz
coincidência o grau militar fosse o mesmo, Tenente Alvarenga.
Foi quando o Jornal Nacional deu que
Jorge fora ferido longe da frente de batalha, numa ação policial contra o
trafico de drogas. Ele estava no Afeganistão comprando ópio e sairia do
hospital direto para a prisão.
Grande frustração em Tenente Abreu. Mas
nas rodas de conversa em frente ao Café Novo, o mais antigo da cidade, as
opiniões se dividiam. Uma facção achava que as homenagens ao Jorge deveriam ser
mantidas, mesmo sem a sua presença. Bem ou mal, ele botara o nome da cidade no
noticiário internacional. Viera até a TV Globo!
E afinal –
disse um – alguém sabe quem foi o Tenente Abreu?
Ninguém
sabia.
Fui!
Marília
disse a João:
- Tô
indo.
-
Como, “tô indo”?
- Cansei! João. Entendeu?
Cansei!
- Mas
Marília, logo hoje, dia de rabada com nhoque?
- Para
estas coisas não se escolhe dia.
-
Marilhinha…
- Tem
salada de chuchu na geladeira. Tchau.
*****
Nenhum comentário:
Postar um comentário