quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Contículos


Luís Fernando Veríssimo

          
O avião sacudiu, e o homem pegou a mão da mulher sentada ao seu lado. 

– Desculpe – disse o homem. – É que eu...

– O senhor tem medo de voar, é isso? 

– É. Na verdade, medo não. Pavor. 

O homem continuava apertando a mão da mulher. Ela disse: 

 – Acalme-se. Foi só uma sacudida. 

O avião deu outra sacudida. O homem gemeu e pediu: 

– Você pode me abraçar?

A mulher relutou, mas concordou. Envolveu o homem nos seus braços.

– Obrigado – disse o homem. – Era o que a mamãe fazia, quando eu era garoto e nós viajávamos de avião.

– Pronto, pronto – disse a mulher. – Está tudo bem. 

Outra sacudida. 

– Eu posso agarrar o seu seio? – pediu o homem. 

– Meu seio?!

– Para me lembrar da mamãe. Vai me dar mais segurança. 

– Pode – disse a mulher, abrindo a blusa para o homem segurar seu seio.

Nisso ouviu-se a voz da aeromoça avisando que era para apertarem os cintos de segurança porque o avião estava entrando numa zona de turbulência.

– Ai meu Deus – disse o homem. E para a mulher: – Comece a tirar a roupa! 

Metade

Fazia tempo que o Gordo Mário não aparecia no bar. A turma estranhava. Que fim levara o Gordo Mário? Na certa, gordo daquele jeito, tivera um enfarte. O que seria uma pena. O Gordo Mário era um grande companheiro. Divertido. Sempre alegre. Sempre cheio de histórias. Não podia ter morrido. Era tão popular e tinha tantos amigos que, se tivesse morrido, todos já saberiam.

E o Gordo Mário realmente não tinha tido um enfarte e morrido. Tanto não tinha que um dia reapareceu. Na verdade, quem apareceu foi meio Gordo Mário. Um Gordo Mário magro, quase irreconhecível. Contou que tinha feito uma dieta espetacular e perdido metade do seu peso. Aliás, contou isto várias vezes, para quem quisesse e não quisesse ouvir. O Gordo Mário não tinha outro assunto, só a dieta que o fizera perder a metade do que era.

O consenso no bar foi o seguinte: o Gordo Mário tinha perdido a metade errada.
  
Escolhas

Albert Camus disse que a única questão filosófica é o suicídio. Surpreende que – tendo sido goleiro na sua juventude argelina – Camus não tenha feito um adendo: as únicas questões filosóficas são o suicídio e o pênalti. Este pensamento não passou pela cabeça nem do Doninho, que ia bater o pênalti naquele final de jogo empatado, nem do Marcão, goleiro do adversário.

Mas os dois estavam vivendo um momento camusiano: dois homens diante da magnitude de uma escolha decisiva, de uma escolha de vida ou morte que só depende deles, que não está nem escrita nem preordenada nas estrelas. Doninho: finjo que vou chutar na direita, mas chuto na esquerda, ou chuto na direita mesmo porque ele vai adivinhar que eu vou fazer mesmo o que fingi que ia fazer, para enganá-lo.

A escolha é só minha, Deus não tem nada a ver com isto. Marcão: escolho um lado e me atiro. Se acertar acertei, se não acertar... De qualquer maneira, a escolha é só minha. Doninho corre para a bola e chuta, e o conto termina aqui. Se a bola entra ou não, não é mais uma questão filosófica.

Dois homens tramam um assalto.

- Valeu, mermão? Tu traz o berro que nóis vamo rendê o caixa bonitinho. Engrossou, enche o cara de chumbo. Pra arejá.

- Podes crê. Servicinho manero. É só entrá e pegá.

- Tá com o berro aí?

- Tá na mão.

Aparece um guarda.

- Ih, sujou. Disfarça, disfarça...

O guarda passa pelos dois, que fingem estar discutindo.

- Discordo terminantemente. O imperativo categórico de Hegel chega a Marx diluído pela fenomenologia de Feurbach.

- Pelo amor de Deus! Isso é o mesmo que dizer que Kierkegaard não passa de um Kant com algumas sílabas a mais. Ou que os iluministas do século 18...

O guarda se afasta.

- O berro, tá recheado?

- Tá.

- Então vamlá!

Desejável

- Meu bem... Você está deslumbrante!

- Tudo para você, querido.

- Esse penteado...

- Fui a cabeleireiro e pedi um corte novo para o meu maridinho me achar desejável. Fui ao maquiador e pedi que me deixasse bem bonita e sexy para atrair meu maridinho. Comprei esta camisola provocante para enlouquecer você.

- E conseguiu, meu amor. Você está...

- Não me toca senão estraga tudo!

O encontro

Um homem livra-se de todos os seus bens materiais, abandona a família e vai viver no deserto. Leva o suficiente para sobreviver no deserto durante um ano. Não fazendo nada, só olhando o sol de dia e as estrelas à noite. Quer se encontrar com Deus e não quer nada à sua volta. Nada que distraia sua atenção, nada que confunda sua visão no caso de Deus aparecer. E o deserto é nada para todos os lados. Nada de horizonte a horizonte.

Mas de tanto olhar o sol e examinar os horizontes esperando ver Deus, o homem fica cego. É socorrido e levado para um hospital numa cidade grande, e, incapaz de ver o que o cerca e distinguir o sono da escuridão da cegueira, mergulha em si mesmo - e encontra Deus, que o recebe com um "alô" amistoso.

- Eu queria muito encontrá-lo - diz o homem.

- Eu sei, eu sei.

- Fui procurá-lo no deserto, despojado de tudo, livre da civilização...

- Pois é, foi no lugar errado. Acontece muito. Eu estava aqui todo este tempo.

- Esperei você em vão.

- Para dizer a verdade, não gosto muito de lugares ermos. A gente começa a pensar demais, a se autoquestionar... E a solidão? Prefiro lugares onde há gente e movimento. Bom é civilização.

- Mas ninguém se lembra de procurar você dentro de si.

- Pois é. Querem espetáculo. Visões no deserto. Epifanias. Conversões cinematográficas. Não é o meu estilo.

- Mas...

- Vê se dorme um pouco. Amanhã a gente conversa. Agora você sabe onde me encontrar.

O vento

Uma porta bateu no fundo da casa, acordando a velha que cochilava na sua cadeira de balanço.

- Que foi isso? – perguntou a velha.

- Foi o vento, vovó.

 A velha fechou os olhos outra vez e resmungou:

- Mal-educado

O filho da cidade

Grande alvoroço em Tenente Abreu. Dera no jornal: filho da cidade ferido no Afeganistão. Tenenteabreusense atingido por uma bala no pé. Quem era e o que estava fazendo no Afeganistão? Ninguém sabia. Chegou uma equipe da Globo na cidade para entrevistar parentes e amigos, talvez antigas namoradas, do brasileiro ferido. Não encontrou ninguém que se lembrasse dele. Não seria o filho do barbeiro, aquele que emigrara para os Estados Unidos? Ele talvez tivesse se alistado no exército americano. O próprio barbeiro negou. Seu filho Jorge trabalhava numa pizzaria em Nova York e nunca chegaria perto do Afeganistão. Foram procurar no registro de nascimentos. Lá estavam o nome dele – Jorge Souza Alvarenga – e do pai, Pedro, e da mãe, Dulce. Mas ninguém se lembrava nem do pai nem da mãe. Havia um Pedro Alvarenga na cidade, mas este nunca se casara e suspeitava-se até que fosse um pouco gay. Começaram a surgir rumores. Jorge e sua família teriam saído de Tenente Abreu quando ele ainda era criança. Jorge se ferira numa ação heroica e seria condecorado pelos americanos. Jorge era casado com uma americana, possivelmente uma modelo. Alguns já especulavam sobre como seriam a mulher e os filhos do herói, todos loiros.

O noticiário do Afeganistão não ajudava. Dava poucos detalhes sobre o ocorrido. Só dizia que Jorge perdera o pé, estava bem, mas continuava hospitalizado. Nasceu um movimento na cidade: trazer Jorge para Tenente Abreu. Se não como uma volta a casa, como uma passagem triunfal pela sua cidade natal. Um desfile em carro aberto pela Voluntários da Pátria, com a mulher e os filhos loiros, exibindo a sua medalha, seguido de uma recepção na prefeitura. Houve até quem sugerisse que se mudasse o nome da cidade, de Tenente Abreu para Jorge Alvarenga. Ou, se por uma feliz coincidência o grau militar fosse o mesmo, Tenente Alvarenga.

Foi quando o Jornal Nacional deu que Jorge fora ferido longe da frente de batalha, numa ação policial contra o trafico de drogas. Ele estava no Afeganistão comprando ópio e sairia do hospital direto para a prisão.

Grande frustração em Tenente Abreu. Mas nas rodas de conversa em frente ao Café Novo, o mais antigo da cidade, as opiniões se dividiam. Uma facção achava que as homenagens ao Jorge deveriam ser mantidas, mesmo sem a sua presença. Bem ou mal, ele botara o nome da cidade no noticiário internacional. Viera até a TV Globo!

E afinal – disse um – alguém sabe quem foi o Tenente Abreu?

Ninguém sabia.

Fui!

Marília disse a João:

- Tô indo.

- Como, “tô indo”?

- Cansei! João. Entendeu? Cansei!

- Mas Marília, logo hoje, dia de rabada com nhoque?

- Para estas coisas não se escolhe dia.

- Marilhinha…

- Tem salada de chuchu na geladeira. Tchau.

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