sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Véu, grinalda e facadas

A hipocrisia das listas de casamento

Walcyr Carrasco


Recebo um convite de casamento. Anexado a ele, o nome da loja onde se encontra a lista de presentes. Suspiro fundo. Noivos não andam brincando. Escolhem endereços bem sofisticados. Como agora. Ao entrar, ouço o tilintar dos cristais, percebo o fulgir das pratarias. “Estou perdido”, reflito. A vendedora me atende, solícita, e fornece o rol de preciosidades eleito pelo casal. Quase desmaio.

‒ Vou ficar com o cinzeiro ou o saca-rolhas ‒ gemo.

‒ Já foram. Hoje em dia, os convidados correm mais do que atletas olímpicos para ficar com os itens mais baratos. Você chegou tarde.

Perscruto, à espera de uma saída. A vendedora sibila:

‒ Ela gostou muito desta baixela de prata.

Tento convencer a garota:

‒ Você não pode fingir que errou ao marcar a lista e eu levo o cinzeiro?

Ela me encara como se eu fosse um facínora. Digo que vou pensar e fujo. Começa minha peregrinação. Satisfazer a ambição de noivos anda difícil. Já vi lista de casamento com tapete persa incluso. O pior é ser convidado para padrinho. Houve época em que era pura alegria, quase uma forma de parentesco. Agora, a escolha parece fazer parte de um projeto financeiro. Soube de casamentos com oito casais de padrinhos no altar. Com tantos casamentos programados para o fim do ano, um amigo, ao ser indicado, optou pela atitude direta:

‒ Aceito, sim. Mas aviso: não vão esperando presente bom!

Até funciona, embora seja um constrangimento só. A noiva dá um sorriso amarelíssimo e garante com voz de taquara rachada:

‒ Nem pensei em presente!

Ah, de quantas falsidades é composto o nosso dia-a-dia! Todo casal pensa no butim do matrimônio! No caso em questão, sou um convidado comum. Observo um detalhe: no convite, explica-se que os noivos se despedem na igreja.

‒ Devo morrer com a baixela e não levo nem um uísque? ‒ revolto-me.

É outra falsidade, naturalmente. Não há casamento sem um mínimo de comemoração. O item “despedida na igreja” significa, simplesmente, que fui dispensado do melhor de tudo. Mais tarde, uma tia da moça confessa:

‒ Faremos só uma coisinha para a família e uns amigos. Não dava para convidar todo mundo. Por favor, não diga que eu contei.

Revolto-me novamente. Convidar, não dá. Pedir presente, pode? Então não me enviassem o endereço da loja. Devo silenciar, para não dedar a tia de língua solta. “Mas eu sou considerado um sujeito criativo. Acho que posso escolher um presente por mim mesmo”, concluo.

Liberdade de escolha é o oposto do desejado pelos noivos, eu sei. Não penso mais no prazer de oferecer algo inesquecível. Mas em sair dessa sem fazer feio. Como, aliás, acabam fazendo todos os convidados. Vou a uma loja de departamentos. Passeio diante dos itens. Flores plásticas? Certamente vão odiar. Se eu comprar as mais pavorosas, acabarão agradecendo-me, e depois as jogam no lixo. Seria ótimo, se eu tivesse coragem. Um conjunto de chá? Sempre é útil. Passo por um faqueiro e quase fico com a batedeira. Acabo numa floricultura, onde encontro um vasinho de trevos de quatro folhas. Nada melhor para sair de uma saia justa.

Envio o vasinho, torcendo para não recebê-lo de volta na minha cabeça. Quando comentarem, direi ter sido movido pela intuição.

Para que sejam muito felizes ‒ afirmei com voz úmida.

Pelo que conheço dos dois, estarão divorciados em pouco tempo. Vivem brigando! Na igreja, entro na fila dos cumprimentos. Descubro que um dos padrinhos, eleito com precisão, ofereceu uma viagem ao Caribe. É um americano, sócio do pai do noivo. Falam nele com veneração. Não teve chance de se livrar, coitado.

Ninguém comenta meu vasinho. Como conheço a natureza humana, suponho que por trás me chama de pão duro, no mínimo. Dias depois, cruzo com o pai da noiva numa rua dos Jardins. O homem sua:

‒ Não aguento mais trocar presentes. Foram dezesseis jogos de chá e dezoito batedeiras! Enquanto eles se divertem no Caribe, eu faço a peregrinação nas lojas.

‒ Mas e a lista de presentes?

‒ Depois dos mais baratos, ninguém comprou. Eles foram com muita sede ao pote, só escolheram objetos caríssimos.

Na volta da lua-de-mel, visito os recém-casados. Meus trevos ocupam lugar de destaque no centro da mesa da sala. A jovem esposa sorri, delicadíssima:

‒ Só ganhamos porcarias. Se tivesse casado pelos presentes, já estaria arrependida. Adorei mesmo seu vasinho. Supercriativo.

Sorrio. A plantinha está enfiada no meio de uma porção de objetos, como se colocada às pressas. Ou seja, um instante antes de eu chegar. As pequenas hipocrisias do cotidiano tornam os sorrisos mais sinceros.

*****

“Crônica brasileira contemporânea”,
Organização e apresentação de Manuel da Costa Pinto São Paulo: 
Editora Moderna

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