sábado, 14 de outubro de 2017

O Sacristão


W. Somerset Maugham


Tinha havido um batizado naquela tarde na Igreja de São Pedro, em Neville Square e Albert Edward Foreman ainda usava a sua opa de sacristão. Ele a envergava com orgulho, pois sentia que ela era o símbolo dignificante do seu ofício e, quando a tirava para regressar a casa, não conseguia deixar de se sentir insuficientemente vestido. A opa lhe dava trabalho, porque ele pessoalmente a passava a ferro. Durante os 16 anos em que fora sacristão daquela igreja, possuíra várias vestimentas como aquela, mas nunca tivera coragem de jogá-las fora quando se tornavam muito usadas. A coleção completa, cuidadosamente embrulhada em papel pardo, jazia nas últimas gavetas do guarda-roupa de seu quarto.

O sacristão esperava que o vigário terminasse a sua função, para poder ir embora. Pouco depois, viu o padre atravessar o templo, ajoelhar-se em frente ao altar e descer por uma das naves, ainda com a batina.

“O que estará ele esperando?", perguntou o sacristão para si mesmo, “Não sabe que está na hora do seu chá?”

Aquele vigário (um homem corado e forte, com seus 40 anos) havia sido nomeado recentemente, e Albert Edward ainda lamentava a partida do predecessor, um religioso da velha escola que fazia descansados sermões com voz monocórdia e adorava jantar fora com seus paroquianos mais aristocráticos. Ele gostava que as coisas na igreja fossem assim, mas nunca aborrecia ninguém; não era como este novo vigário, que se intrometia em tudo. Albert Edward, porém, era tolerante.

“Não sei para que essa bisbilhotice”, dizia Albert Edward, “mas um dia ele aprenderá.”

O vigário desceu a nave e dirigiu-se ao sacristão: “Foreman, pode vir à sacristia por um minuto? Quero lhe dizer uma coisa.” Albert Edward o seguiu até a sacristia e ficou surpreso ao encontrar lá dois fabriqueiros, homens de idade que serviam naquela igreja havia quase tanto tempo como ele próprio.

Albert Edward os encarou e, com ligeiro desconforto, imaginou qual seria o problema. Seus pensamentos, porém, não transpareceram em suas feições quase inescrutáveis. Manteve uma atitude não se diria obsequiosa, mas digna. Já trabalhara em casas de excelentes famílias, antes de ser designado para o serviço eclesiástico, e sua compostura era irrepreensível. Se não fazia lembrar um duque, parecia pelo menos um ator dos velhos tempos, habituado a representar esse papel. Albert Edward possuía tato, firmeza e segurança. Seu caráter era à prova de dúvida.

O vigário falou bruscamente. “Foreman, você tem trabalhado aqui há muitos anos, e acho que tanto Sua Eminência como os fiéis em geral partilham a minha opinião de que você tem executado o seu trabalho satisfatoriamente.”

Os dois fabriqueiros assentiram.

“Mas uma circunstância das mais extraordinárias chegou ao meu conhecimento no outro dia, e senti ser de meu dever confiá-la aos fabriqueiros. Para enorme espanto de minha parte, descobri que você não sabe ler nem escrever.”

O rosto do sacristão não demonstrou qualquer sinal de embaraço.

“O vigário anterior sabia disso, senhor”, respondeu ele. “Dizia que não fazia diferença, e, por outro lado, afirmava também que o mundo não precisava de viver com tanta educação.”

“É a revelação mais espantosa que já ouvi”, exclamou o vigário. “Você que dizer que tem sido sacristão desta igreja há 16 anos e nunca aprendeu a ler nem a escrever?”

“Comecei a trabalhar aos 12 anos, senhor. A cozinheira da primeira casa onde me empreguei tentou me ensinar, mas eu não tinha muito jeito para essas coisas, e depois, com um trabalho e outro, nunca dispus de tempo para aprender. Também nunca me fez falta. Minha mulher é muito instruída e, quando preciso escrever uma carta, ela a escreve.”

“Bem, Foreman”, disse o vigário, “o fato é que, numa igreja como esta, não podemos manter um sacristão analfabeto. Compreenda-me, pessoalmente não tenho nada contra você; pelo contrário, tenho grande consideração pelo seu caráter e capacidade, mas imagine se acontece um acidente provocado pela sua lamentável ignorância? Não queremos ser injustos, mas tomamos uma decisão. Vamos dar-lhe três meses, e, se no fim desse tempo não tiver aprendido a ler e a escrever, você terá que sair.”

Albert Edward nunca gostara do novo vigário. Desde o começo dissera que fora um engano designá-lo para aquela igreja. Tentou aprumar-se; conhecia o seu valor e não se permitiria ser passado para trás.

“Lamento muito, senhor, mas acho que não adianta. Já estou muito velho para aprender essas coisas. Pode contar com a minha demissão, assim que tiver encontrado um substituto.”

Quando Albert Edward, com sua habitual educação, fechou a porta da igreja, deixando o vigário e os dois fabriqueiros, já não conseguia sustentar o ar de imperscrutável dignidade com que recebera o golpe que lhe fora desferido. Seus lábios ficaram trêmulos. Voltou lentamente à sacristia e pendurou a opa no cabide. Guardou todo o resto, vestiu o casaco e, com o chapéu, caminhou pela nave a descer a praça, perdido em seus pensamentos, sem tomar a rua que o levaria para casa.

Caminhava devagar, como se o coração lhe pesasse. Não sabia o que fazer. Conseguira economizar uns trocados, mas não o bastante para que pudesse viver descansadamente. Nunca imaginara que passaria por aquilo. Os sacristãos de São Pedro, como os papas em Roma, eram vitalícios.

Albert Edward não fumava regularmente, mas, quando se sentia cansado, até que um cigarro ia bem. Ocorreu-lhe que fumar poderia confortá-lo naquele momento, e procurou qualquer lugar onde pudesse comprar um maço de cigarros. Era uma rua comprida, com toda espécie de lojas, mas sem uma única tabacaria.

“Por que até hoje ninguém pensou em montar aqui uma tabacaria?”, perguntou-se ele. “Para vender cigarros e balas.”

Este pensamento o fez parar.

“Hei, até que não é má ideia! Interessante! Como as ideias vêm quando a gente menos espera!”

Voltou para casa e tomou seu chá.

“Você está muito calado esta tarde, Albert,” comentou a mulher. “Estou pensando.”

No dia seguinte, voltou àquela rua e, por sorte, encontrou uma pequena loja para alugar, que lhe convinha perfeitamente. Vinte e quatro horas depois, já a tinha alugado. Um mês após, deixou a igreja de São Pedro, em Neville Square, para sempre. Albert Edward Foreman estabeleceu-se no comércio de fumo e jornais. Sua mulher dissera que, depois de ter sido sacristão, aquilo parecia uma terrível decadência. Ele respondeu que as pessoas tinham de evoluir com o tempo.

Albert Edward se deu muito bem. Tão bem que, em pouco mais de um ano, abriu uma filial e a confiou a um gerente. Então lhe ocorreu que, se podia ter uma loja, por que não ter dez de uma vez?  Assim, começou a andar por Londres e, sempre que encontrava uma longa rua sem tabacaria e com uma loja vaga ele a alugava. No curso de dez anos, já possuía nada menos do que dez tabacarias. Todas as segundas-feiras, Albert Edward fazia a ronda das lojas, coletava os lucros da semana e os depositava no banco.

Certa manhã, quando ele estava no banco, o caixa lhe disse que a gerência gostaria de falar-lhe. Foi levado ao gabinete, onde o gerente lhe apertou as mãos calorosamente.

“Senhor Foreman, sabe quanto dinheiro tem depositado conosco? Mais de 30 mil libras. Isto é muito dinheiro para se ter em depósito, e pensei que talvez o senhor gostasse de investi-lo.”

“Preferia não correr o risco. Ele está seguro no banco.”

“O senhor não terá a menor preocupação. Nós lhe faremos uma lista das melhores ações a comprar. Elas lhe renderão mais dividendos do que os juros que poderíamos pagar-lhe.”

Uma sombra de preocupação perpassou pelo rosto de Foreman. “Nunca lidei com ações, senhor, e eu teria que deixar todo o dinheiro em suas mãos.”

O gerente sorriu. “Nós cuidaremos de tudo. A única coisa que precisará fazer, quando voltar ao banco, será assinar os papéis de transferência.”

“Isso eu posso fazer”, disse Albert sem muita certeza, “mas como iria saber o que estou assinando?”

“Naturalmente o senhor sabe ler”, arriscou o gerente, um pouco irritado.

Foreman deu-lhe um sorriso desconcertante. “Aí é que está, senhor! Não sei ler nem escrever. Apenas assinar o nome, e isso só aprendi quando me tornei comerciante.”

O gerente ficou tão surpreso que quase saltou da cadeira. “O senhor quer dizer que montou o seu negócio e construiu tal fortuna sem saber ler nem escrever? Homem de Deus, pense no que poderia ser hoje se soubesse!”

“Isso é fácil de responder, senhor”, disse Albert Edward, com um modesto sorriso em suas feições aristocráticas. “Se soubesse ler, hoje seria simplesmente sacristão.



Nenhum comentário:

Postar um comentário