domingo, 15 de outubro de 2017

Bibiana



(Na foto acima, Fernanda Montenegro, como Bibiana ,
e Thiago Lacerda com Capitão Rodrigo.)

Sozinha no seu quarto, sentada na sua cadeira de balanço, e enrolada no seu xale, a velha Bibiana espera... O quarto está escuro mas para ela nestes últimos anos, sempre é noite, pois a catarata já lhe tomou conta dum olho e agora está começando a velar o outro. Ela mal-e-mal enxerga o vulto das pessoas, mas ouve tudo, sabe de tudo, conhece as gentes da casa pela voz, pelo andar e até pelo cheiro. Quando ouviu o primeiro tiroteio, ficou nesta mesma cadeira, esperando e escutando. Quando as balas partiam as vidraças ou se cravavam nas paredes, ela tinha a impressão de estar vendo – não! – de estar ouvindo uma pessoa de sua família ser fuzilada pelos inimigos. Medo não sentiu, isso não. Teve dó. E ódio. Estragarem o sobrado desse jeito! Mas a guerra para ela não é novidade. Tudo isso já aconteceu antes, muitas, muitas vezes. Viu guerras e revoluções sem conta, e sempre ficou esperando. Primeiro, quando menina, esperou o pai; depois o marido. Criou o filho e um dia o filho também foi para a guerra. Viu o neto crescer, e agora Licurgo está também na guerra. Houve um tempo em que ela nem mais tirava o luto do corpo. Era morte de parente em cima de morte de parente, guerra sobre guerra, revolução sobre revolução. Como o tempo custa a passar quando a gente espera! Principalmente quando venta. Parece que o vento maneia o tempo.

Dona Bibiana se balouça na sua cadeira. Há momentos em que não se lembra de nada. Na sua cabeça há apenas uma cerração. Ouve ruídos, vozes, engole os mingaus que lhe dão, deixa-se levar para a cama – mas, ás vezes, não sabe quem é quem é nem onde está. Noutros momentos, porém, volta-lhe tudo. E na noite escura da catarata ela vê faces, vultos, cenas. De vez em quando lá longe ouve uma voz: “Bibiaaana!”. É o Capitão Rodrigo que entra como tufão, arrastando as esporas no assoalho. A pele de seu homem tem um cheiro de sol; suas barbas parecem macega, mas macega castanha. Seus olhos... Mas como eram mesmo os olhos do capitão? De que cor? Pretos? Cinzentos? Azuis? Tinha uma voz forte, como a do Curgo – disso a velha Bibiana se lembra.

Ela tem nos dedos murchos um rosário. Esqueceu quase todas as orações. Há uma para dia de tempestade. Outra para tempo de peste. Agora ela precisa rezar pelo bom sucesso de Alice. Para que botar filhos no mundo, se mais tarde ou mais cedo a guerra leva as criaturinhas?

A velha Bibiana gosta do barulho da cadeira nas tábuas do assoalho. É como uma voz, uma companhia. Lembra-lhe outros tempos, outras largas esperas. Estas batidas surdas e o uivo do vento, e o matraquear das vidraças, e o tempo passando...

******

(Do livro “O Tempo e o Vento”, 
de Érico Veríssimo, 1905-1975)


Nenhum comentário:

Postar um comentário