sábado, 9 de setembro de 2017

Receita de felicidade

Ivan Ângelo


Primeiro, é necessário ter certa idade. É muito difícil ser feliz antes dos trinta. Não que seja impossível, mas a juventude tem urgências, compromissos com a aprendizagem, com a paixão, tem limites, rebeldia, ideais, sonhos, competição, e embora tudo isso seja muito bom, não são os elementos da felicidade, porque são geradores de angústia. Felicidade vem depois da angústia, está mais ligada àquela sensação de alívio que a sucede: é uma duradoura, uma continuada sensação de alívio, de graças a Deus já passei por isso.

Basicamente, é preciso ter um amor, uma pessoa boa de abraçar, de conversar, de viajar, de proteger, de dividir e com quem construir. Amores falham, é verdade, e nem sempre duram, mas a eternidade do amor é renovável.

É essencial evitar trabalho estressante, como só ligados a risco financeiro ou aqueles para os quais não somos capazes. Recomenda-se cultivar alguma aptidão, pois a incompetência gera angústia, incerteza, noites sem dormir, o que não leva à felicidade. O problema é que a competência não surge de repente, é preciso incluí-la num projeto pessoal desde o período de formação. Mais complicado ainda: não somos nós quem decide se já somos competentes, é um conceito que os outros desenvolve sobre nós e que devemos procurar manter uma vez estabelecido, pois é artigo fugidio.

Vícios não ajudam, insinuam culpas, sugerem fraquezas. Jogo, álcool, fumo, droga... quem fuma, por exemplo, não consegue ser inteiramente feliz, pois a compulsão resulta de uma deficiência. Uma falta súbita e dominadora. Dependência e felicidade não combinam.

Manter um sonho ajuda muito. Quem já fez tudo ou tem tudo tende ao tédio. Embalados por nossa confiança, imaginamos que realizar tal sonho só depende de vontade, é só começar, é sonho que não angustia, apenas põe um sorriso no travesseiro. Não tem nada que ver com frustração, é até o contrário. Podemos sonhar com uma coisa singela, como escrever um livro de memórias, aprender a tocar violão ou sair de moto por aí. Mesmo que a gente o adie, o sonho nos mantém jovens.

Pode-se ter alguma coisa para lamentar não ter feito, uma sensação do tipo agora já passei da idade. Coisa que não nos atormente. Algo como: gostaria de ter feito um curso de dança de salão, ou aprendido a nadar nos quatro estilos. Cultivar essa cômoda incompetência é uma forma de dizer que estamos satisfeitos, de bem com a vida, dizer que o que falta não nos faz falta.

Filhos, é melhor que sejam bem educados. Dão mais gosto.

É importante morar onde a noção pessoal de intimidade e conforto seja satisfeita. Pequenos detalhes contribuem: um pufe para pôr os pés, uma parede com uma coisa boa para se contemplar, seja quadro ou paisagem, um espaço que não falte nem sobre. É o lugar para onde queremos ir, quando bate o desejo de recolhimento.

Dinheiro não traz felicidade? Pode ser, mas não atrapalha. Ruim é desgraçar-se para tê-lo.

O homem é um animal gregário, e o convívio pessoal pode ter repercussões positivas ou negativas na felicidade. Deve-se fugir do baixo astral. O desperdício de energia em pugilato é altamente negativo. Rixas, embates, fina-pés, altas pressões, estopins curtos ‒ xô! Paz e amor.

No delicado capitulo do sexo, recomenda-se capricho. Na atitude, passar um ar muito sutil de intensidade, oportunismo, ousadia, experiência, desprendimento, persistência, atenção, sentimento, envolvimento, educação. É necessário seduzir até a própria mulher ou marido, mesmo após dez anos de uso. Quanto à técnica, são proveitosos gestos afinados, toques sábios, atenção nos acontecimentos, jeito, ritmo, conhecimentos objetivos de anatomia, ainda que restritos aos órgãos envolvidos, e noções musicais de crescendo e diminuindo. Nesse campo, está cada vez mais difícil enganar e é melhor preparar-se para um bom capricho.

Ah, antes que me esqueça: é bom evitar carro velho.

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Do livro “Crônica Brasileira Contemporânea”,
organização de Manuel da Costa Pinto.
Editora Moderna


Ivan Ângelo (Barbacena, 4 de fevereiro de 1936) é um jornalista, cronista e romancista brasileiro. Começou sua carreira de escritor aos 21 anos na revista de arte e cultura editada em Belo Horizonte, "Complemento". Publicou seu primeiro livro, "Homem sofrendo no quarto", em 1959, conquistando o prêmio "Cidade de Belo Horizonte". Em 1961, lançou "Duas faces", com sete dos contos premiados, alguns novos e dois do amigo Silviano Santiago. Mudou-se para São Paulo em 1965. A revolução iniciada em abril de 1964 inibe sua produção literária. Seu romance "A festa", iniciado em 1963, só foi concluído em 1975. Publicado no ano seguinte, conquistou o prêmio Jabuti. Outros livros do autor: "A casa de vidro", "A face horrível" (prêmio APCA-1986), "Amor?" (prêmio Jabuti - 1995), "O comprador de aventuras e outras crônicas", "História em ão e inha", "O ladrão de sonhos e outras histórias", "Pode me beijar se quiser" (prêmio APCA-1999), e "O vestido luminoso da princesa", entre outros. Mantém coluna semanal no Jornal da Tarde - São Paulo (SP). Seus livros já foram publicados na França, EUA, Alemanha e Áustria. Na área jornalística, trabalhou no Correio de Minas, Diário de Minas e O Tempo, como colunista; no Jornal da Tarde (SP) como editor, editor-executivo e secretário de redação, e colaborador das revistas Playboy e Veja.

(Do blog Empilhando Palavras)

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