Memórias de Iberê Camargo
(1914 – 1994)
“Aqui jaz a vida.”
Frases de seu epitáfio
“Tudo o que fiz na vida fiz sempre com paixão.
Não sou homem de tocar nas coisas com a ponta dos dedos.”
A memória e a gaveta dos guardados.
Nós somos o que somos, não o que virtualmente seriamos capazes de ser.
Minha
bagagem são os meus sonhos. Fui poeta das ruas, das vielas silenciosa do Rio,
antes que se tornasse uma cidade assolada pela violência.* Sempre fui ligado a
terra, ao meu pátio.
No Rio Grande do Sul, estou no colo
da mãe. Creio que minha fase atual, neste momento, em 1993, reflete a eterna
solidão do homem.
A obra só se completa e vive quando
expressa. Nos meus quadros, o ontem se faz presente no agora. Lanço-me na
pintura e na vida por inteiro, como um mergulhador na água. A arte é também
história. E expressa a nossa humanidade. A arte é intemporal, embora guarde a
fisionomia de cada época. Conheci, em Paris, um escultor brasileiro, bolsista,
que não frequentava museus para não perder a personalidade, esquecendo que só
se perde o que se tem.
Cada artista tem seu tempo de
criação. É difícil saber quando começa a gravidez e quando se dá o parto. Há
pintores que são permanentemente prenhes, parindo ninhadas, como era o caso de
Picasso. Eu, antes de iniciar a viagem - o quadro -,
consulto minha bússola interior e traço o rumo. Mas quando estou no mar grosso,
sempre sopra um vento forte que me desvia da rota preestabelecida e me leva a
descobrir o novo quadro.
Todo criador é um Pedro Álvares
Cabral. A lenda chinesa ensina que a espontaneidade - Tchuang-tseu desenhou um
siri num abrir e fechar de olhos - exigiu de Tchuang-tseu anos e anos de
aprendizado e observação da natureza, que, como se sabe, é a fonte do
conhecimento. O exemplo do mestre chinês foi há muito esquecido pelas gerações.
Hoje, predomina a pressa...
Viver é andar, é descobrir, é
conhecer. No meu andarilhar de pintor, fixo a imagem que se me apresenta no
agora e retorno às coisas que adormeceram na memória, que devem estar
escondidas no pátio da infância.
Gostaria de ser criança outra vez
para resgatá-las com as mãos. Talvez tenha sido o que fiz, pintando-as.
As coisas estão enterradas no fundo
do rio da vida. Na maturidade, no ocaso, elas se desprendem e sobem à tona,
como bolhas de ar. Como se vê, a criação se faz com o agora e com o tempo que
recua. O pintor cria imagens para expressar seus sentimentos. Estes podem ser
do real ou formas abstratas, pouco importa. Creio que sua criação e duração na
obra do artista são determinadas pelo subconsciente.
A memória é a gaveta dos guardados,
repito para sublinhar. O clima de meus quadros vem da solidão da campanha, do
campo, onde fui guri e adolescente. Na velhice, perde-se a nitidez da visão e
se aguça a do espírito.
A memória pertence ao passado. É um
registro. Sempre que a evocamos, se faz presente, mas permanece intocável, como
um sonho. A percepção do real tem a concretizar a realidade física, tangível.
Mas como os instantes se sucedem feito tique-taques do relógio, eles vão se
transformando em passado, em memória, e isso é tão inaferrável como um instante
nos confins do tempo.
Escrever pode ser, ou é, a
necessidade de tocar a realidade que é a única segurança de nosso estar no
mundo - o existir. É difícil, se não impossível, precisar quando as coisas
começam dentro de nós.
Em verdade, não sou um admirador das
coisas que faço. Não sou uma pessoa extasiada com seu fazer, como se eu
merecesse um pedestal. Essa decantação da forma em muitas águas, tanto nas
palavras como nas linhas, na pintura, é uma depuração, uma síntese que leva ao
que chamo uma “transfiguração” situada além da aparência. Importante é
encontrar a magia que existe nas coisas, na vida. Do contrário, seria apenas um
testemunho visual de um fenômeno ao alcance de qualquer um.
Não há um ideal de beleza, mas o
ideal de uma verdade pungente e sofrida que é a minha vida, é tua vida, é nossa
vida, nesse caminhar no mundo.
Sou
impiedoso e crítico com minha obra. Não há espaço para alegria.
Acho que toda grande obra
tem raízes no sofrimento. A minha nasce da dor. Das minhas raras alegrias, uma
me vem à mente: criança, aguardo ansioso a chegada do trem que traz a Bua (01).
Entendo que a vida é uma caminhada.
Os ciclistas de meus quadros são caminhantes, no fundo, sem meta. São seres
desnorteados. No andar do tempo, vão ficando as lembranças: os guardados vão se
acomodando em nossas gavetas interiores. Como temos cicatrizes! A vida foi nos
causando essas feridas que nos acompanham até o fim. Nós somos como as
tartarugas, carregamos a casa. Essa casa são as lembranças. Nós não poderíamos
testemunhar o hoje se não tivéssemos por dentro o ontem, porque seríamos uns
tolos a olhar as coisas como recém-nascidos, como sacos vazios. Nós só podemos
ver as coisas com clareza e nitidez porque temos um passado. E o passado se
coloca para ajudar a ver e compreender o momento que estamos vivendo.
O momento é cheio de uma totalidade.
Somos alguém envolvido pelas coisas, envolvido pela água, envolvido pelo vento,
pelos componentes físicos. O que me prende não é a nomenclatura dos elementos,
mas o próprio envolvimento. As coisas são assim: encontramos a última palavra,
elas se acabam. Quando eu quero me ver livre, expressar tudo que tenho dentro
de mim, lanço o quadro e aparece a imagem. Mas a imagem continua sendo um
enigma outra vez. Pensamos que tudo apareceu revelado, e de fato se revelou:
está visível, mas continua o enigma. Eu apenas objetivei em forma o enigma que
estava dentro. A interrogação continua.
E a resposta
não foi dada.
A vida dói... Para mim, o tempo de
fazer perguntas passou. Penso numa grande tela que se abre, que se oferece
intocada, virgem. A matéria também sonha. Procuro a alma das coisas. Nos meus
quadros o ontem se faz presente no agora. A criação é um desdobramento
contínuo, em uníssono com a vida. O auto-retrato do pintor é pergunta que ele
se faz a si mesmo, e a resposta também é interrogação. A verdade da obra de
arte é a expressão que ela nos transmite. Nada mais do que isso!
(Porto Alegre, 1993 e
1994)
(01) Bua: apelido de Juliana Burn, ama-de-leite do pintor.
Iberê Bassani de Camargo (Restinga Seca,
18 de
novembro de 1914
-
Porto Alegre,
9 de agosto
de 1994)
foi um pintor,
gravurista
e professor
brasileiro.
* Em 1980, no Rio, ocorreu o
assassinato do engenheiro Sérgio Alexandre Esteves Areal. O incidente nunca foi
devidamente esclarecido. Pela versão de Iberê, no fim da tarde, saindo do
ateliê, o pintor caminhava com a secretária até uma loja para comprar cartões
de Natal quando viu Areal agredindo a esposa. Nervoso por ser observado, o
engenheiro reagiu e empurrou Iberê, que estava armado e disparou dois tiros.
Foi absolvido por legítima defesa (tinha posse de arma), porém nunca se
recuperou psicologicamente da tragédia. O pintor resolveu voltar a morar em Porto Alegre e, ao
mesmo tempo, trazer a figura humana de volta aos óleos e gravuras.
Abaixo, imagens do Museu Iberê Camargo,
às margens do Rio
Guaíba.
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