sábado, 19 de agosto de 2017

Cal viva no Natal



João Cândido sendo preso

Graças ao papel desempenhado por Rui Barbosa, a Revolta da Chibata terminou com um decreto anistiando todos os revoltosos e pondo fim aos castigos físicos. Até então, como mostro em “História Regional da Infâmia”, as penas eram estas: “Para as faltas leves, prisão a ferro na solitária, por um a cinco dias, a pão e água; faltas leves repetidas, idem, por seis dias, no mínimo; faltas graves, vinte e cinco chibatadas, no mínimo”. Como se viu, o marujo Marcelino recebeu 250 chibatadas. A anistia, porém, durou três dias. Outro decreto, de 28 de novembro de 1910, autorizou “a baixa, por exclusão, das praças do Corpo de Marinheiros Nacionais, cuja permanência se tornar inconveniente à disciplina”.

A limpeza dos quadros aconteceu em 7 de dezembro. Três dias depois, sem qualquer ligação direta com os revoltosos da questão da chibata, estourou uma nova revolta, na Ilha das Cobras. O governo ordenou o bombardeio do local. Mário Maestri, em “Uma História da Revolta da Chibata”, precisa: “A esquadra inglesa prestou bons serviços ao massacre, iluminando, durante a noite, com os potentes holofotes de seus navios, os marinheiros encurralados”. A ilha tornou-se um monte de escombros. João Cândido, apesar de ter cumprido as ordens dos superiores, embarcado no Minas Gerais, foi preso, assim como seus companheiros “anistiados”. Ele e mais 17 homens foram enfiados na solitária número 5 da prisão da Ilha das Cobras, onde não cabiam mais de seis prisioneiros.

Jogaram cal viva na cela escavada na rocha. O comandante Marques da Rocha foi passar a noite de Natal em casa e levou a chave da solitária com ele. Um trecho de “João Cândido, O Almirante Negro”, de Alcy Cheuiche, revela o horror daquela noite de 25 de dezembro de 1910: “João Cândido não grita por socorro. Precisa poupar o fôlego para seguir respirando. Os que mais gritaram foram os primeiros a desmaiar uns sobre os outros. O pó de cal entra por suas narinas e parece lhe queimar a garganta, forçar caminho para os pulmões fechados. Sem água há dois dias, recolhe na concha da mão um pouco da própria urina e bebe com sofreguidão. Seus pés descalços pisam nos corpos dos companheiros”. Dezesseis homens morreram ali.

O Almirante Negro sobreviveu. O promotor João Pessoa, cujo assassinato seria o estopim da Revolução de 1930, pediu 20 anos de pena para Marques da Rocha. Ele foi absolvido pelo Conselho de Guerra. Os marinheiros foram condenados ao degredo no Acre. Maestri resume: “A viagem constituiu uma sucessão de bárbaros assassinatos, a sangue-frio. Já no dia seguinte à partida, às 23h, impacientes, os oficiais da escolta determinaram o fuzilamento do marinheiro Hernani Pereira dos Santos e a prisão a ferros, como animais, de sete outros anistiados”. E completa: “Na noite de 1° de janeiro de 1911, apenas o navio se afastara da cidade, o comandante e os três tenentes ordenaram a execução de mais quatro marinheiros”. Foram nove os executados. Absolvido em 1912, João Cândido continuou banido. O Brasil ainda não pagou aos seus familiares o que deve ao Almirante Negro.


João Cândido antes de seu falecimento

Juremir Machado da Silva: juremir@correiodopovo.com.br


Nenhum comentário:

Postar um comentário