David Coimbra*
Queria ter uma secretária. Chega um momento da vida em que um homem precisa de uma. É o meu caso. Não gosto de mulheres de coque, mas minha secretária usaria coque. E óculos, claro, óculos são peça de lei em secretária, inclusive as de boa vista.
Minha secretária seria longilínea, magra,
mas não muito, as pernas sólidas, morena. Vestiria aqueles conjuntinhos
comportados. Seria muito séria. Só me chamaria de “seu David”. Ai de você, se
quisesse se meter a galã com minha secretaria. Ela dispararia um olhar de raio
congelante que o deixaria humilhado.
Minha secretária se chamaria Celene.
Dona Celene. Sonho em apertar aquele botão do interfone e convocar:
‒ Dona
Celene, venha à minha sala para ditado.
Dona Celene viria de lá com seu
bloquinho e seu lápis, se acomodaria em uma cadeira posta à frente da minha
mesa de dois metros de comprimento, cruzaria as longas e luzidias pernas cor de
caramelo e, depois de me enviar um olhar neutro, perguntaria, ajeitando os
óculos no nariz fino:
‒ Pois não?
Tenho de
pensar em assuntos para o ditado.
Graças à dona Celene, todos os meus
e-mails seriam respondidos pressurosamente, que tenho milhares a responder.
Minhas contas estariam sempre em
dia. Jamais faltaria papel na impressora. E, o mais
importante, ela é que faria essas compras on-line, sempre me atrapalho nas
compras on-line. Dona Celene, a própria eficiência.
A despeito de sua necessária
formalidade, dona Celene trataria de meus assuntos pessoais com intimidade
profissional. E é aí que está o grande segredo, o busílis, aí é que está o
motivo de eu precisar tanto de uma secretária, a esta altura da vida. É que,
com seu profissionalismo, dona Celene eliminaria qualquer sentimento de culpa
que eu pudesse acalentar ao praticar certas atividades, digamos, menos
produtivas. Porque hoje é assim: vou jogar um xadrezinho e logo me assalta
aquela ansiedade que ralha: “Neste tempo, você poderia estar escrevendo uma
página inteira, seu vagabundo”.
Com dona Celene, não. Dona Celene
chegaria com seus olhos de Charlize Theron e seus joelhos de Natalie Wood e me
lembraria:
‒ Senhor David, eu estava revisando as
minhas anotações e percebi que já faz tempo que o senhor não vê um bom filme de
detetive no cinema.
‒ Senhor David, coloquei uma Blue Moon
no congelador e, a esta hora, ela deve estar branquinha. O senhor quer que a
sirva em uma taça ou em um copo?
‒ Senhor David, segundo a agenda, é
hora de descascar uma laranja na sacada e comer vagarosamente, gomo por gomo,
observando as crianças que brincam na pracinha.
Como dizer não à solenidade de dona
Celene? Se ela falou, tenho de fazer. É compromisso. Obrigação.
Assim, eu reconheceria que ela está
certa, balançaria a cabeça, emitiria um suspiro de resignação e concordaria:
‒ Tudo bem, dona Celene...
Paciência... Me passe aqui essa taça de Blue Moon bem geladinha.
*****
(De sua coluna diária no jornal Zero Hora,
de Porto Alegre, RS.
*David Wagener Coimbra (Porto
Alegre, 28 de abril de 1962) é um jornalista, radialista, escritor e cronista
brasileiro.
O jornalista David Coimbra faleceu em Porto Alegre no dia 27 de maio de 2022.
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