sábado, 8 de julho de 2017

Patativa do Assaré e o sertão dentro de nós

Rafael Hofmeister de Aguiar*


Patativa do Assaré, por Marcelo F. de Abreu

Antônio Gonçalves da Silva recebeu, ainda jovem, a alcunha de Patativa do Assaré**, por causa de seus poemas serem comparados com a beleza da ave patativa. Embora tenha frequentado a escola formal por apenas quatro meses, desenvolveu uma poética que abrange um amplo universo, sobretudo, a vida do sertão. E é falando sobre esse espaço que, em um de seus poemas mais conhecidos, “Retrato do Sertão”, Patativa do Assaré afirma: “Vivo dentro do sertão/E o sertão dentro de mim”, constituindo-se em um dos maiores intérpretes do Nordeste brasileiro. Aquele “Caboclo Roceiro”, título de outro poema seu, coloca-se, assim, ao lado de escritores como Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Guimarães Rosa, desvelando não só o sertão e suas fissuras sociais, mas também o sertão dentro de nós.

Há 15 anos, em 8 de julho de 2002, Antônio Gonçalves da Silva deixou a vida, contudo seus versos e seu canto continuaram e, ainda, vão ecoar, enquanto existirem injustiças sociais. Eis a perspectiva da poética patativana: o social. Nesse sentido, a fala do genro do poeta, Raimundo, a quem entrevistei na primeira das minhas quatro viagens para Assaré-CE, revela percepção do sertanejo acerca da preocupação social do poeta. Ele afirma que o que orientava a poesia patativana era a luta contra a injustiça social, em um país em que pessoas morriam de fome e pelo descaso dos governantes.

Aliás, denunciando as mazelas sociais, o poeta ficou nacionalmente conhecido em 1964, quando Luiz Gonzaga gravou “A Triste Partida”, que perfaz o drama dos retirantes sertanejos. Assim, Patativa fala sobre uma família obrigada a abandonar a terra natal e viver aprisionada no Sudeste, sendo explorada pelo patrão, recebendo o destino de nunca retornar ao sertão. É um comovente relato sobre aqueles descasos de que Raimundo chamava atenção.

É na poética de cunho social, cantando o seu próprio drama, que Patativa nos emociona. Esse é o caso de “A Morte de Nanã”, em que conta a morte da própria filha devido à fome advinda da seca. Acompanhando o relato do poeta, é difícil não se emocionar com os versos em que a menina dá os seus últimos suspiros e pede a bênção do pai para partir.

Apesar de ser associado ao cordel, os folhetos constituem-se uma parte ínfima da produção de Patativa do Assaré, que afirmava que não fazia cordel, pois a sua poesia era criação própria. O poeta-pássaro, dessa forma, está ligado mais ao universo da cantoria e da poesia improvisada: o repente. E é imbuído do improviso que o poeta, em um jantar em Fortaleza na década de 1970, tendo um gravador à sua frente, brada:

Gravador que estás gravando
Aqui, no nosso ambiente,
Tu gravas a minha voz,
O meu verso, o meu repente.
Mas, gravador, tu não gravas
A dor que o meu peito sente!

Tu gravas em tua fita,
Com a maior perfeição,
O timbre da minha voz,
A minha fraca expressão!
Mas não gravas a dor grave,
Gravada em meu coração.

Caso também emblemático do improviso patativano é, quando, por causa de um poema contra o prefeito de Assaré, o poeta é preso. Ao chegar à delegacia, ele encontra a ave patativa presa em uma gaiola e dispara quase em automático:

Patativa descontente,
Nessa gaiola cativa,
Embora bem diferente,
Eu também sou patativa.

Linda avezinha pequena,
Temos o mesmo desgosto,
Sofremos a mesa pena,
Embora em sentido oposto.

Meu sofrer e teu penar
Clamam a divina lei.
Tu, presa para cantar,
Eu, preso porque cantei.

          (...)

Patativa do Assaré foi a voz do sertão, apresentando as suas fissuras sociais. Ao nos emocionar com seus versos, desvelando não só a dor do sertanejo como também a dor que muitos de nós podemos sentir diante do sofrimento do outro, o sertão não está somente dentro do poeta, mas dentro de nós. 


(Do caderno de Sábado – Correio do Povo – julho de 2017)

*Mestre em Processos e Manifestações Culturais pela Universidade Feevale, doutorando em Letras – Estudos de Literatura pela Ufrgs e professor e pesquisador do IFRS – Campus Rolante.
  
**Antônio Gonçalves da Silva, mais conhecido como Patativa do Assaré (Assaré, 5 de março de 1909 ‒ Assaré, 8 de julho de 2002), foi um poeta popular, compositor, cantor e improvisador brasileiro.

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