segunda-feira, 17 de julho de 2017

Mineirinho, um bandido dos anos 60.



“Correu pela rua da América atirando nos policiais. Pulou o muro, caiu na linha férrea, os homens atrás dele (...). Saltou dormentes e trilhos, atirou até nas sombras. Galgou outro muro, saiu na rua General Pedra. Um time de policiais estava ali, armado até os dentes, esperando-o (...). Outro tiroteio, o bandido escapou, correu pela rua perseguido por aquela pesada. Virou noutra rua, não deu para continuar, a viela era comprida, ótimo alvo pros “tiras”. Ele viu um ônibus parado perto da garagem, vazio. Aí ele zás, debaixo do coletivo. (...) Um “tira” olhou embaixo, Mineirinho estava encolhido, perto das rodas. (...) Rodearam o coletivo: rajada de metralhadoras, trovões de Winchester (...). Mineirinho* só gritou: (...) “Atira logo. Estão matando homem!”. Seu corpo apareceu na estrada Grajaú-Jacarepaguá, perto do bar Cabana. O corpo torto, furado de balas, a boca aberta mostrou só aquele dentinho...”

(Octávio Ribeiro)


*Mineirinho morreu em maio de 1962, crivado com 13 tiros por um esquadrão que o perseguia. Virou personagem renomado da escritora Clarice Lispector e sua biografia foi adaptada para o cinema em 1967, com o título “Mineirinho, Vivo ou Morto”, interpretado pelo ator Jece Valadão, com direção de Aurélio Teixeira.

1962: José da Rosa Miranda, o terrível Mineirinho, assaltante de botequim, postos de gasolina, carros de transporte de bebida, choferes de táxi, estava morto. Tinha sido fuzilado pelo Esquadrão da Morte. Mas a opinião pública estava confusa: por um lado, aliviada com a morte do bandido, por outro, estarrecida com a violência policial.

E a escritora Clarice Lispector exprimia essa angústia num artigo publicado na revista Senhor:

Nosso Século – Brasil – 1960-1980 (I)


Mineirinho

Clarice Lispector

É, suponho que é em mim, como um dos representantes do nós, que devo pro­curar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irre­dutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perple­xidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e, no entanto, nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: “O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu”. Respondi-lhe que “mais do que muita gente que não matou”. Por quê? No entanto, a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.

Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina ‒ porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.

Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais.

Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos.

Até que treze tiros nos acordam, e com horror digo tarde demais – vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu – que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva.

Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo-terceiro tiro o que eu dormia? Sua assustada violência. Sua violência inocente – não nas conseqüências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta.

Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estre­meça.

A violência rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se erguessem e enfim se enchessem de lágrimas. Só depois que um homem é encontrado inerte no chão, sem o gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito: também eu.

Eu não quero esta casa. Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo em Mineirinho – essa coisa que move montanhas e é a mesma que o fez gostar “feito doido” de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita que dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de rádium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador – em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, que não me perdi, experimentei a perdição.

A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime. Continuo, porém, esperando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem.

E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta tran­cada. Mas ela está de pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma.

Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila e que outros furtivamente fingirão que esta­mos todos certos e que nada há a fazer.

Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E, sobretudo, procurar não entender.

Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo ‒ uma coisa que entende. Essa coisa que fica muda diante do homem sem o gorro e sem os sapatos, e para tê-los ele roubou e matou; e fica muda diante do São Jorge de ouro e diamantes. Essa alguma coisa muito séria em mim fica ainda mais séria diante do homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é desespero em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de rádium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido com­preendo o que é perigoso compreender, e só como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o rádium se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade.

Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização.

Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento.

Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranqüila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato.

O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno.


Prisão de Mineirinho realizada pelo Detetive Perpétuo de Freitas,
 em 21/10/1961


9 comentários:

  1. O Mineirinho foi a vítima, não a primeira, porque viriam muitas mais ao longo de tenebrosos anos de torturas e mortes. Já havia a fórmula da polícia assassina, Esquadrão da Morte, varrendo santos e demônios. Mineirinho mreceu a prosa de Clarice.

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  2. NOSSOS POLICIAIS NAÕ PODEM MORRER SEM OS Q MATAM ELES NAÕ SOFREM PUNIÇOES....SE NAÕ DER PRA PRENDE LOS QUAL O REMEDIO???NOSSOS POLICIAIS TEM Q ESTAR VIVOS SI NAÕ COMO SEREMOS PROTEGIDOS JUNTO DE NOSA FAMILIA???

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    1. Mais desordem e violência não resolvem nada. Eles não fuzilaram porque era a única solução, não era necessário. Como Clarice mesma disse: "um tiro bastava, o resto era vontade de matar. Era prepotência."

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    2. Concordo com sua opinião. Foi uma execução sem chance de defesa.

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  3. Eu tenho o jornal da prisão deles 1954

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  4. Douglas escreve em 2018. Adivinha em quem ele votou? MAM

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