Lima Barreto no hospício
→ Lima Barreto era triste e
visionário como diz o título da biografia escrita por Lilia Moritz Schwarcz.
Enxergava melancolicamente longe. Sofria de bovarismo. Madame Bovary queria
viver mais do que podia e sentir mais do que lhe cabia. A sociedade não podia
perdoar-lhe tamanha ambição.
→ Lima Barreto escrevia livros
irônicos e realistas que ninguém lia. Atacava a corrupção dos políticos, que
chamava de comilança, batia no conservadorismo dos jornais, odiava as afetações
modernistas, esculhambava a obsessão das elites por estrangeirismos e
enfrentava as panelinhas que dominavam os espaços chiques do seu tempo de
citações e incitações. Era um duro chicote batendo em Chico e em Francisco. Sabia
que o poder era da imprensa. Fazia crítica de mídia. Dava com os burros n´água.
→ Dava com água nos burros. Lima
era negro e sofrido. Publicava por pequenas editoras e era ignorado pela
imprensa, que o fustigava com seu silêncio canalha. Lima tinha, porém, os seus
contatos e furava como podia o bloqueio impostos pelos donos do campo. Ele
queria ser o anti-Machado de Assis. Clamava por uma literatura de combate que
incomodasse os poderosos. Lima era militante, denunciava o racismo e não fazia
concessões de qualquer ordem. Machado de Assis teve generosos espaços na
“mídia”. É preciso procurar com uma lupa alguma manifestação sua nos jornais
sobre a questão negra. Lima fazia barulho. Machado era discreto. Cartadas
diferentes. Machado ganhou. Lima perdeu. Em vida, Lima Barreto parou duas vezes
no hospício. Machado de Assis morreu pobre. Nada mudou?
→ Lima Barreto era boêmio e foi
devorado pelo álcool. Bebia escrevendo e escrevia bebendo. O álcool é o inimigo
número um do escritor bovarista. O inimigo número dois é a confissão de
exclusão. Falar da própria exclusão, exclui sempre mais. Lima Barreto comprava
briga, polemizava, desafiava, arrumava inimigos de graça vendo graça em tudo. Detonou os
modernistas, que se consagrariam na semana de 1922, na casca. Ridicularizou o
futurismo de Marinetti, que chamou de velho, e os modismos dos paulistas,
nacionalistas deslumbrados com a Europa e populistas de butique.
→ Inquieto e impiedoso, Lima
Barreto frequentava o centro do Rio de Janeiro, mas sacolejava até a periferia
como o plebeu que era e nunca deixaria de ser. Via o seu talento ser ignorado,
menosprezado e vilipendiado por não poder fazer parte do clube, salvo o dos
marginalizados, pois era livre demais para ser aceito por alguma confraria de
moderninhos. Lima Barreto morreu pela língua e pela pena. Dizia o que pensava e
não pensava nas consequências do que dizia. Eis um homem que não calculava. Eis
o homem cordial: agia pelo coração, por impulso, por emoção, por instinto, por
vocação. Não se censurava.
→ O tempo passa. Quantos Lima
Barreto andam por aí? Quem é? Quem não é? Lima Barreto como escritor
homenageado do Festival Literário de Paraty (FLIP) é quase um contrassenso. Se
estivesse vivo e na ativa, Lima Barreto dificilmente teria mesa de destaque em
Paraty onde reinam os afetados. Continuaria certamente a ser um escritor negro
marginalizado com belos livros ignorados pela mídia fashion e umbilical. Seria,
como foi, chamado de autor de textos desleixados, sem imaginação e ressentidos.
Lima Barreto viu e viveu tudo precocemente. A exclusão é atemporal. Meu ídolo
literário. A melancolia do excluído é que ele acaba por falar de quem o exclui.
Não consegue silenciar. Não pode se vingar. Lima Barreto anda por aí luminoso
como uma referência recuperada pelos seus inimigos.
→ Publicou a sua obra mais
conhecida, “Triste fim de Policarpo Quaresma”, como folhetim no Jornal do
Commercio. Teve de meter a mão no bolso para garantir a edição do romance como
livro quatro anos depois. Vivendo entre a depressão e o alcoolismo, sempre de
ponta com o mundo das modas, pregando pacifismo em tempos de guerra e
guerreando em tempos de paz, ele aprofundou com certo gosto a sua
marginalização. Se era para ser marginal, ele o seria com estilo, força e
obsessão. Nascido numa sexta-feira, 13 de maio de 1881, ele via nesse aspecto
um sinal de sorte. Acontece que a sorte raramente esteve do seu lado. A sorte
não perde tempo. Ela corre ao lado dos vencedores. É calculista e pragmática.
→ Quem era melhor, Machado de
Assis ou Lima Barreto? Literariamente, texto contra texto, Lima Barreto era tão
bom ou melhor do que Machado de Assis. Podia ser melhor e podia ser pior.
Machado de Assis escrevia com o cérebro em estado de frieza absoluta. Procurava
não se comprometer. Posava de branco. Uma operação controlada. Lima Barreto
escrevia com as tripas e com o coração. O criador de Capitu foi sinuoso. O de
Policarpo Quaresma, direto e implicante. Machado amaciava. Lima batia. Machado
adensava. Lima botava o preto no branco. Machado comia pelas beiradas. Lima
enfiava o dedo no olho. Se Machado de Assis é o nosso Pelé, Lima Barreto é o
nosso Garrincha.
→ Quando recebeu do jovem Sérgio
Buarque de Holanda um exemplar da revista modernista “Klaxon”, Lima Barreto
achou que era uma propaganda americana de automóveis e rotulou os intrépidos
paulistas, que se propunham a modernizar nossa cultura, de “moços tão
estimáveis”. Papo reto: achou que era um bando de almofadinhas encantados com
as últimas modas estrangeiras tentando fazer papel de rebeldes. Eu sou mais
Lima Barreto. Nunca um anarquista foi tão tropical e tristemente certeiro.
(Juremir Machado da
Silva*, no Correio do Povo, julho de 2017)
*Juremir Machado da Silva,
nascido em 29 de janeiro de 1962, em Santana do Livramento, graduou-se em
História (bacharelado e licenciatura) e em Jornalismo pela PUCRS, onde também
fez Especialização em Estilos Jornalísticos. Passou pela Faculdade de
Direito da UFRGS, onde também chegou a cursar os créditos do mestrado em Antropologia. Obteve
o Diploma de Estudos Aprofundados e o Doutorado em Sociologia na Universidade
Paris V, Sorbonne, onde também fez pós-doutorado. Como jornalista, foi
correspodente internacional de Zero Hora em Paris, trabalhou na IstoÉ e colaborou
com a Folha de S. Paulo. Atua como colunista do Correio do Povo desde o ano
2000. Tem 27 livros individuais publicados, entre os quais Getúlio, 1930, águas
da revolução, Solo, Vozes da Legalidade e História regional da infâmia, o
destino dos negros farrapos e outras iniquidades brasileiras. Coordena o
Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUCRS. Apresenta diariamente, ao
lado de Taline Oppitz, o programa Esfera Pública, das 13 às 14 horas, na Rádio
Guaíba.
Nenhum comentário:
Postar um comentário