domingo, 25 de junho de 2017

Poemas de Cecília Meireles



(7.11.1901 – 9.11.1964)
  
Apresentação

Aqui está minha vida ‒ esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.
Aqui está minha voz ‒ esta concha vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.
Aqui está minha dor ‒ este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.
Aqui está minha herança ‒ este mar solitário,
que de um lado era amor e, do outro, esquecimento.

Cecília Meireles, in “Retrato Natural”, 1949.

Madrugada na aldeia

Madrugada na aldeia nevosa,
com as glicínias escorrendo orvalho,
os figos prateados de orvalho,
as uvas multiplicadas em orvalho,
as últimas uvas miraculosas.
O silêncio está sentado pelos corredores,
encostado às paredes grossas,
de sentinela.
E em cada quarto os cobertores peludos envolvem o sono;
poderosos animais benfazejos, encarnados e negros.
Antes que um sol luarento
dissolva as frias vidraças,
e o calor da cozinha perfume a casa
com a lembrança das árvores ardendo,
a velhinha do leite de cabra desce as pedras da rua
antiqüíssima,
e o pescador oferece aos recém acordados
os translúcidos peixes,
que ainda se movem, procurando o rio.

Cecília Meireles, in “Mar Absoluto e Outros Poemas”.

Voo

Alheias e nossas as palavras voam.
Bando de borboletas multicores, as palavras voam
Bando azul de andorinhas, bando de gaivotas brancas,
as palavras voam.
Voam as palavras como águias imensas.
Como escuros morcegos, como negros abutres,
as palavras voam.
Oh! alto e baixo em círculos e retas acima de nós,
em redor de nós as palavras voam.
E às vezes pousam.

Cecília Meireles, in “Melhores Poemas”.

Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
‒ não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
‒ mais nada.

Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
‒ Em que espelho ficou perdida
a minha face?

→ Cecília nasceu no Rio de Janeiro em 1901. Órfã de pai e de mãe, foi educada pela avó materna, que exerceu forte influência sobre a sua formação. Escreveria mais tarde: “Nasci aqui mesmo no Rio de Janeiro, três meses depois da morte de meu pai, e perdi minha mãe antes dos três anos. Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais, mas, ao mesmo tempo, me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a Morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno. Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar. Mais tarde foi nessa área que os livros se abriram, e deixaram sair suas realidades e seus sonhos, em combinação tão harmoniosa que até hoje não compreendo como se possa estabelecer uma separação entre esses dois tempos de vida, unidos como os fios de um pano. (…) Vovó era uma criatura extraordinária. Extremamente religiosa, rezava todos os dias. E eu perguntava: ‘Por quem você está rezando?’ ‘Por todas as pessoas que sofrem’. Era assim. Rezava mesmo pelos desconhecidos. A dignidade, a elevação espiritual de minha avó influíram muito na minha maneira de sentir os seres e a vida”.


(Texto de Bula Revista por Carlos William Leite)


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