sexta-feira, 5 de maio de 2017

Malandros e a pernada carioca

                 

Foto: JM Arruda/Ensaio ‘Malandros I’

(Falando de Ismael Silva)

No Bar Apolo e no Café do Compadre, ele se juntaria a uma turma da pesada, criaturas que atendiam pelos nomes e alcunhas de Brancura, Baiaco, Bide, Francelino, Julinho do Violão, Gaguinho, Geraldo Vagabundo, Henrique Cabeça Grande, Mãozinha, Nanal, Nino do Estácio, João Mina e Saturnino.

Alguns, naquele grupo, pegavam pesado no batente. Na lista, tinha de bombeiro hidráulico a fundidor, de feirante a lustrador de móveis, de torneiro mecânico a sapateiro. Mas o grosso do pessoal vivia mesmo de biscates e eternas virações. Eram fortuitos jogadores de chapinha, punguistas de ocasião, cafetões profissionais. Quase todos se definiam, com muita honra e orgulho, pelo epíteto de “malandros”. Não viam nisso nenhuma espécie de mancha moral. A malandragem, entendiam, era uma maneira de não ceder à lógica perversa que condenava negros e mestiços à mendicância, ao desemprego e à pobreza extrema.

Eram adeptos do chamado “samba duro”, da velha “pernada carioca”, também conhecida como “batucada”. Nesse jogo unindo música e luta física, os batuqueiros formavam uma roda e entoavam refrões em coro. Um jogador se plantava no meio da roda com as pernas unidas e rijas, enquanto o adversário gingava em torno dele, aguardando a ocasião propicia para lhe desferir a “pernada” – podia ser tesoura, a banda de frente, a encruza, a banda jogada ou qualquer outro tipo de golpe aplicado com a intensidade necessária para tentar derrubá-lo.

Se o oponente caísse, estava fora, desmoralizado, passando atestado de frouxo. Quem permanecia de pé trocava de lugar e recebia o encargo de fazer o outro desabar de traseiro no chão. Os mais seguros de si vestiam-se a caráter, como o típico terno branco de linho irlandês S-120, o melhor tipo disponível na praça. Era como se, com isso, proclamassem aos quatro ventos que não cogitavam a simples hipótese de vir a cair e, por consequência, macular a roupa, considerada símbolo máximo da malandragem.

Não à toa, viviam enrascados com a polícia. A maioria deles foi presa e respondeu a inquéritos em mais de uma oportunidade ao longo da vida. Em geral, faziam da valentia uma regra de conduta. Mais tarde, seriam romantizados na figura do malandro folgazão, um sujeito sempre simpático, sedutor incorrigível e anti-herói libertário, invariavelmente boa-praça. Mas, na vida de carne e osso, as adversidades da malandragem não ofereciam margens para apologias e idealizações idílicas. Vários terminaram seus dias precocemente, em trocas de navalhadas e sangrentas brigas de rua. Outros tiveram o organismo arruinado pela sífilis ou pela tuberculose, moléstias adquiridas nas infindáveis noitadas de arruaças e boemia.

(Do livro Uma História do Samba ‒ As Origens”, de Lira Neto – Companhia das Letras) 




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