domingo, 16 de abril de 2017

O Grito


(Excerto)*


François-René Moreaux. Proclamação da Independência, 1844.
Museu Imperial de Petrópolis, Rio de Janeiro.


A correspondência entregue pelos dois mensageiros a D. Pedro na colina do Ipiranga refletia esse momento máximo de confronto entre Brasil e Portugal. Uma carta da princesa Leopoldina recomendava ao marido prudência e que ouvisse com atenção os conselhos de José Bonifácio. A mensagem do ministro dizia que informações vindas de Lisboa davam conta do embarque de 7.100 soldados que, somados aos 600 que já tinham chegado à Bahia, tentariam atacar o Rio de Janeiro e esmagar os partidários da Independência. Diante disso, Bonifácio afirmava que só haveria dois caminhos para D. Pedro. O primeiro seria partir imediatamente para Portugal e lá ficar prisioneiro das cortes, condição na qual já se encontrava seu pai, D. João. O segundo era ficar e proclamar a Independência do Brasil, “fazendo-se seu imperador ou rei”. “Senhor, o dado está lançado e de Portugal não temos a esperar senão escravidão e horrores”, escrevia Bonifácio. “Venha Vossa Alteza Real o quanto antes, e decida-se, porque irresolução e medidas de água morna (...) para nada servem, e um momento perdido é uma desgraça”. Uma terceira carta, do cônsul britânico no Rio de Janeiro, Henry Chamberlain, mostrava como a Inglaterra analisava a situação política em Portugal. Segundo ele, já se falava em Lisboa em afastar D. Pedro da condição de príncipe herdeiro como punição pelos seus repetidos atos de rebeldia contra as cortes constituintes. A carta de Leopoldina, a mais enfática de todas, terminava com uma frase que não deixava dúvida sobre a decisão a ser tomada: “Senhor, o pomo está maduro, colhe-o já!”

Quatro anos mais tarde, em depoimento por escrito, o padre Belchior registrou o que havia testemunhado a seguir:

“D. Pedro, tremendo de raiva, arrancou de minhas mãos os papéis e, amarrotando-os, pisou-os e deixou-os na relva. Eu os apanhei e guardei. Depois, virou-se para mim e disse:

– E agora, padre Belchior?

Eu respondi prontamente:

– Se Vossa Alteza não se faz rei do Brasil será prisioneiro das Cortes e, talvez, deserdado por elas. Não há outro caminho senão a independência e a separação.

D. Pedro caminhou alguns passos, silenciosamente, acompanhado por mim, Cordeiro, Bregaro, Carlota e outros, em direção aos animais que se achavam à beira do caminho. De repente, estacou já no meio da estrada, dizendo-me:

– Padre Belchior, eles o querem, eles terão a sua conta. As cortes me perseguem, chamam-me com desprezo de rapazinho e de brasileiro. Pois verão agora quanto vale o rapazinho. De hoje em diante estão quebradas as nossas relações. Nada mais quero com o governo português e proclamo o Brasil, para sempre, separado de Portugal.

Respondemos imediatamente, com entusiasmo:

– Viva a Liberdade! Viva o Brasil separado! Viva D. Pedro!

O príncipe virou-se para seu ajudante de ordens e falou:

– Diga à minha guarda, que eu acabo de fazer a independência do Brasil. Estamos separados de Portugal. O tenente Canto e Melo cavalgou em direção a uma venda, onde se achavam quase todos os dragões da guarda.

Pela descrição do padre Belchior não houve sobre a colina do Ipiranga o brado “Independência ou Morte”, celebrizado um século e meio mais tarde pelo ator Tarcísio Meira, no papel de D. Pedro em filme de 1972. O famoso grito aparece num outro relato, do alferes Canto e Melo, registrado bem mais tarde, quando o acontecimento já havia entrado para o panteão dos momentos épicos nacionais. A versão do alferes, de tom obviamente militar, mostra um príncipe resoluto e determinado. Por ela, D. Pedro teria lido a correspondência e, “após um momento de reflexão”, teria explodido, sem pestanejar:

‒ É tempo! Independência ou morte! Estamos separados de Portugal!

A terceira testemunha, o coronel Marcondes, infelizmente não estava no alto da colina do Ipiranga, em condições de esclarecer as contradições entre os depoimentos do padre Belchior e do alferes Canto e Melo. Marcondes, como se viu acima, recebera ordens de D. Pedro para se adiantar com a guarda de honra e naquele momento descansava com seus soldados numa venda próxima do riacho, local hoje conhecido como “Casa do Grito”. Por precaução, no entanto, havia destacado um vigia para alertá-lo da eventual aproximação do príncipe. Foi desse ponto de observação que Marcondes primeiro viu Bregaro e Ramos Cordeiro, os dois mensageiros da corte, cruzarem a galope rumo à colina. Passados alguns instantes, notou que a sentinela vinha no sentido contrário, em direção à guarda de honra. Avisava da chegada de D. Pedro, também a galope.

O depoimento do coronel:

“Poucos minutos poderiam ter-se passado depois da retirada dos referidos viajantes (Bregaro e Cordeiro), eis que percebemos que o guarda, que estava de vigia, vinha apressadamente em direção ao ponto em que nos achávamos. Compreendi o que aquilo queria dizer e, imediatamente, mandei formar a guarda para receber D. Pedro, que devia entrar na cidade entre duas alas. Mas tão apressado vinha o príncipe, que chegou antes que alguns soldados tivessem tempo de alcançar as selas. Havia de ser quatro horas da tarde, mais ou menos. Vinha o príncipe na frente. Vendo-o voltar-se para o nosso lado, saímos ao seu encontro. Diante da guarda, que descrevia um semicírculo, estacou o seu animal e, de espada desembainhada, bradou:

‒ Amigos! Estão, para sempre, quebrados os laços que nos ligavam ao governo português! E quanto aos topes daquela nação, convido-os a fazer assim!

E arrancando do chapéu que ali trazia a fita azul e branca, a arrojou no chão, sendo nisto acompanhado por toda a guarda que, tirando dos braços o mesmo distintivo, lhe deu igual destino.

‒ E viva o Brasil livre e independente!, gritou D. Pedro.

Ao que, desembainhando também nossas espadas, respondemos:

‒ Viva o Brasil livre e independente! Viva D. Pedro, seu defensor perpétuo!

E bradou ainda o príncipe:

‒ Será nossa divisa de ora em diante: Independência ou Morte!

Por nossa parte, e com o mais vivo entusiasmo, repetimos:

‒ Independência ou Morte!

A proclamação de D. Pedro descrita pelo coronel Marcondes é chamada por alguns historiadores de “Segundo Brado do Ipiranga”. Aconteceu alguns minutos depois do primeiro, já na meia encosta da colina, a cerca de 400 metros do riacho. É interessante observar as sutilezas entre os dois gritos do Ipiranga. O primeiro ocorreu de forma mais simples, na presença de um grupo restrito e revela traços de indecisão na atitude de D. Pedro. O segundo, solene e convicto, perante a guarda de honra, é o que ficou registrado na memória nacional. O relato do padre a respeito desse segundo grito confirma a versão de Marcondes, embora com palavras diferentes. Por ele, diante da guarda, o príncipe repetiu, agora em tom mais enfático, a declaração que fizera momentos antes:

‒ Amigos, as cortes portuguesas querem mesmo escravizar-nos e perseguem-nos. De hoje em diante nossas relações estão quebradas. Nenhum laço nos une mais.

E, arrancando do chapéu o laço azul e branco, decretado pelas cortes como símbolo da nação portuguesa, atirou-o ao chão dizendo:

‒ Laço fora, soldados! Viva a Independência e a liberdade do Brasil.

Respondemos com um viva ao Brasil independente e a D. Pedro.

O príncipe desembainhou a espada, no que foi acompanhado pelos militares. Os acompanhantes civis tiraram os chapéus. E D. Pedro disse:

‒ Pelo meu sangue, pela minha honra, pelo meu Deus, juro fazer a liberdade do Brasil.

‒ Juramos, respondemos todos.

D. Pedro embainhou novamente a espada, no que foi imitado pela guarda, pôs-se à frente da comitiva e voltou-se ficando em pé nos estribos:

‒ Brasileiros, a nossa divisa de hoje em diante será Independência ou Morte; e as nossas cores, verde e amarelo, em substituição às das cortes.

Acompanhado pela guarda de honra, desde aquele momento rebatizada com o pomposo nome de “Dragões da Independência”, D. Pedro chicoteou a sua “baia gateada” para vencer os últimos cinco quilômetros do total de setenta que percorria naquele dia. Faltava uma hora para o pôr do sol quando entrou em São Paulo saudado pelos sinos das igrejas e pelos escassos moradores que se aglomeravam nas ruas de terra batida. Exausto, empoeirado e ainda debilitado pelos problemas intestinais, recolheu-se ao Palácio dos Governadores, o mesmo que o havia hospedado dias antes ao chegar do Rio de Janeiro.

As notícias dos extraordinários acontecimentos daquela tarde às margens do Ipiranga se espalharam rapidamente. Na frente do acanhado teatrinho do Pátio do Colégio um grupo de partidários da independência ligado à Igreja e à maçonaria reuniu-se para decidir o que fazer. Era preciso homenagear o príncipe, mas ninguém sabia exatamente como proceder. Obviamente, não havia tempo de preparar um Te Deum ou uma recepção de gala, como a circunstância pedia. Era necessário improvisar. Por isso, decidiu-se aproveitar a encenação da peça O Convidado de Pedra, marcada para aquela noite. D. Pedro gostava de teatro e sua presença no camarote principal já estava confirmada16. “Disseram que era preciso declarar-se um monarca e formar uma monarquia brasileira”, relatou 40 anos mais tarde o padre Ildefonso Xavier Ferreira, integrante do grupo. “Ninguém merecia mais do que o ínclito príncipe de Portugal, que nos acabava de dar a independência”. O próprio Ildefonso foi encarregado de fazer a aclamação.

D. Pedro entrou no teatro às 21h30min e, como previsto, dirigiu-se ao camarote principal sem saber da homenagem que lhe prestariam em seguida. Antes que o espetáculo começasse, Padre Ildefonso levantou-se do camarote número 11, onde se reunia o grupo de maçons, e se dirigiu à plateia. Ali, colocou-se de pé na terceira bancada, bem em frente ao lugar ocupado pelo príncipe, respirou fundo e se preparou para cumprir seu papel. Na hora de fazer a aclamação, porém, ficou inseguro e relutou por alguns segundos. “Temia que o príncipe não aceitasse”, contou depois. “Então, eu seria preso como revolucionário”. Por fim criou coragem e soltou o vozeirão:

‒ Viva o primeiro rei brasileiro!

Para seu alívio, D. Pedro inclinou-se em sinal de aprovação e agradecimento. Era a senha para que todo o teatro viesse abaixo e repetisse o brado do padre Ildefonso:

‒ Viva o primeiro rei brasileiro!, explodiu a multidão.

Animado com a repercussão, padre Ildefonso repetiu o grito por três vezes. “Virou o herói da noite diante daquele que havia sido o herói do dia”, na inspirada definição de Octávio Tarquínio de Sousa.


(Revista Época)

*Excerto: parte do texto integral, fragmento.


Os personagens da Independência:


Dom Pedro I


José Bonifácio de Andrada e Silva


Padre Belchior



Nenhum comentário:

Postar um comentário