Arthur Azevedo
Algum tempo antes de entrar
definitivamente, na vida prática, o bacharel Sesostris, que hoje é pai de
família e magistrado, teve as suas veleidades literárias, e topava a tudo;
poesia, conto, folhetim, romance e teatro.
Foi o manuscrito da sua primeira e
única peça que o introduziu na caixa de um teatro, e o aproximou de Rosalina,
que das nossas atrizes era naquele tempo a primeira em beleza e a última em talento. Essa Rosalina ,
que o empresário conservava no elenco da companhia em atenção unicamente às
suas virtudes plásticas, casara-se com um ator por seu turno ali conservado tão
somente por ser marido dela.
Dizer que era uma segunda Penélope no
tocante à fidelidade conjugal seria faltar descaradamente à verdade que devo
aos leitores das minhas historietas; pelo menos as más línguas, e mesmo as
boas, não a poupavam: mais de um frequentador habitual do teatro onde ela se
exibia era apontado como tendo solicitado, e obtido os seus favores mais
íntimos.
O bacharel Sesostris foi convidado
pelo empresário para fazer a leitura da peça uma tarde, no palco, depois do
ensaio e a hora aprazada, sentou-se diante de uma pequena mesa rodeado de quase
toda a companhia, e abriu um manuscrito.
Ia em meio o primeiro ato, ouvido em
silêncio com um recolhimento digno de uma tragédia, quando o comediógrafo
sentiu que do joelho de Rosalina, sentada à sua direita, se desprendia um calor
comunicativo que o perturbava. Sabe Deus como pôde o rapaz concluir a leitura
daquele primeiro ato!
Durante o segundo, continuaram as
manifestações equivocas, ou antes, inequívocas, e o bacharel, suando frio,
tremendo, gracejando, deixava que se perdessem todos os efeitos cômicos das
situações e do diálogo. Os ouvintes, cada vez mais frios e reservados,
atribuíam a indisposição do leitor à impressão terrível de se achar ali
submetido à opinião e ao julgamento de tantas sumidades artísticas.
Durante o terceiro ato, Rosalina
completou com o pé – um pé pequenino, admiravelmente calçado – a obra de
sedução que principiara com o joelho.
Terminada a leitura o empresário, que
durante os dois primeiros atos a interrompera com significativos e irreverentes
bocejos, e agora dormia a sono solto, despertou logo que ouviu as consoladoras
palavras: “cai o pano”, e disse ao comediógrafo:
– Sim, senhor, é uma bonita
comédia... mas não é para o meu teatro... é muito fina, tem pouca bexigada...
Entretanto, não digo que a não represente... hei de representá-la, mas quando o
teatro estiver mais encarreirado. O doutor tem muito talento: escreva outra
comédia, mas com sal mais grosso, com sal de cozinha.
– De
cozinha?!
– De
cozinha, sim senhor! Isto de sal fino não traz dez réis à bilheteria!
O bacharel Sesostris, que tinha a
inestimável fortuna de contar apenas vinte e dois anos, deixou-se iludir; mas,
quando mesmo recebesse, como dramaturgo, um desengano formal, que lhe
importava, se Rosalina, a formosa Rosalina, tão cobiçada por todos os homens,
ali estava para consolá-lo das medonhas lutas de autor incipiente?
Quando o empresário acabou de lhe
recomendar o sal grosso, ele voltou-se e procurou-a com os olhos: ela
desaparecera, sem ao menos dizer-lhe adeus...
Dali por diante, o bacharel entrou a
frequentar a caixa do teatro, e especialmente o camarim de Rosalina; esta,
porém, não renovou as manifestações do joelho e do pé, como se resolvida
estivesse a mostrar ao moço que ele não podia subir mais alto...
Figurava na companhia um velho ator
que se dizia muito amigo de Sesostris, e lhe captara a confiança; este
escolheu-o para confidente dos seus amores, e contou-lhe as provocações da
atriz.
O velho ator
sorriu maliciosamente.
– Como se explica – perguntou o
bacharel – que essa mulher depressa mudasse de sentimento a meu respeito?
– Explica-se perfeitamente: você ia
ler uma comédia e ela queria apanhar o primeiro papel. Desde o momento em que
percebeu a peça não seria representada, fez tanto caso de você como da primeira
camisa que vestiu.
– Então se a
comédia fosse aceita...?
– Se a comédia fosse aceita, a
Rosalina seria sua! E só assim poderia tê-la de graça – aquilo é mulher de
dinheiro.
Passaram-se três meses, e o teatro
longe de se encarreirar como esperava o empresário, entrou numa dessas crises
tão comuns na vida nossos teatros. Depois de cinco ou seis desastres, o público
afastou-se e o empresário deixou de pagar regularmente aos artistas. A situação
era desesperada.
Rosalina e o marido sofreram como os
demais, considerando-se felizes quando apanhavam dez ou vinte mil-réis por
conta dos vencimentos atrasados.
Foi nestas circunstâncias que o pé e
o joelho da atriz voltaram a perturbar o sossego do bacharel Sesostris.
A opinião do velho ator não a
desmerecera no espírito do moço; aos vinte e dois anos o coração é cego para os
defeitos da mulher por quem palpita, e quando por ventura resolva analisá-los,
acaba verificando que são qualidades e não defeitos.
Uma noite, Sesostris, ao despedir-se
dela, deixou-lhe nas mãos bilhete pedindo-lhe uma entrevista, e dizendo-lhe que
na noite seguinte, durante o espetáculo, iria buscar a resposta ao camarim.
E foi.
A atriz
deixou sair o cabeleireiro que a penteava, e disse ao namorado:
– Seja
prudente! Nem uma palavra sobre o assunto do seu bilhete.
– Mas... a
resposta?
– Disfarce... Está ali sobre a janela...
por baixo do pratinho da moringa... Faça de conta que vai beber água... Olhe
que a porta do camarim está aberta, e há por aí muita gente desconfiada da sua
assiduidade.
Sesostris disfarçou, foi ao lugar da
moringa, levantou o pratinho, encontrou o bilhete, meteu-o na algibeira,
conversou ainda alguns momentos, em voz alta, sobre o calor, a falta do
público, etc... e saiu, impaciente por ler a desejada resposta.
Para fugir a quaisquer olhares
indiscretos, meteu-se no mictório do teatro e foi ali, meio sufocado pelas
exalações amoniacais, que leu o seguinte:
“Doutor. – Antes de
responder ao seu amável bilhete, quero merecer-lhe um grande obséquio. Como
sabe, a empresa está nos devendo três quinzenas, o dia 15 está na porta, e é
provável que ainda desta vez fiquemos a ver navios, porque o teatro não tem
feito nada. Estamos na miséria. Embora isto muito me custe, peço-lhe que nos
mande, amanhã, para a nossa casa, que o doutor sabe onde é, os mantimentos
constantes da inclusa lista, e que são para a nossa despensa. Desculpe o
incômodo e creia na amizade da sua – Rosalina.”
A esta carta inverossímil, estava,
efetivamente anexa, uma lista de secos e molhados – tantos litros de feijão,
tantos quilos de carne-seca, etc. Nada faltava: azeite, macarrão, azeitonas,
vinho, pacotes de velas, lamparinas, manteiga, o diabo!
No dia seguinte parava uma carroça à
porta de Rosalina, levando todos esses comes e bebes; mas o bacharel Sesostris,
apesar dos seus vinte e dois anos, entendeu que nunca mais deveria aparecer
àquela estúpida.
*****
Arthur Azevedo
Artur Nabantino Gonçalves de
Azevedo (07/07/1855, São Luís – MA – 22/10/1908, Rio de Janeiro – RJ) figurou,
ao lado do irmão Aluísio Azevedo, no grupo fundador da Academia Brasileira de
Letras, onde criou a Cadeira n. 29, que tem como patrono Martins Pena, não por
acaso um autor teatral.
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