(8 de Setembro
de 1888
- 4 de Agosto
de 1930)
Sinhô, o “Rei do
Samba”, em charge de Klixto.
Com alcunha de “Rei do Samba”, José
Barbosa da Silva foi considerado o mais popular compositor de samba das
primeiras décadas do século XX. Conhecido pelo público como Sinhô, era filho de
um pintor apaixonado por choro, que tinha adoração pelos flautistas Joaquim
Callado e Patápio Silva. Seu pai gostaria muito de vê-lo flautista, mas o rapaz
preferiu mesmo o piano e o violão.
A vaidade de Sinhô
Cronista carnavalesco do Jornal do Brasil e autor do pioneiro
livro Na roda do samba, João
Guimarães (mais conhecido como Vagalume) foi convidar Sinhô, em maio de 1920,
no Teatro São José, em plena temporada de sucesso da revista Pé de Anjo, para tocar nas bodas de ouro
de um amigo. O diálogo entre os dois é um perfeito exemplo da vaidade do
compositor de samba mais famoso da primeira geração:
- Sinhô, meu amigo. Preciso
de você.
- Pois não, meu tio. Dê
suas ordens.
- Organizei uma festinha na
casa do nosso amigo F., que completa bodas de ouro, e você tem que ir comigo
para animar a brincadeira, pois temos lá um bom piano.
- Não há dúvida, Guima do
coração. Você manda neste mulato.
- Então vamos. O automóvel está esperando.
- Ah, querido, já... É
impossível. Só depois de acabar o espetáculo.
- Por quê?!
- Porque eu sou o autor da
música!
- E o que tem Frei Tomás
com Isabel de Godói? O que tem uma coisa a ver com a outra?
- O que é que tem? E se de
repente os espectadores me chamarem à cena?
- Mas Sinhô, a peça já está
com 174 apresentações!
- É, mas o povo é exigente.
De repente cisma e começa a chamar: “Sinhô à cena! Sinhô à cena!” E se eu não
estiver no teatro, olha o fuzuê formado...
Numa dessas apresentações, em festa
particular, ocorreu um fato curioso. Uma jovem, entusiasmada com o pianista,
pediu que ele executasse “Elégie”, do compositor erudito Massenet. Conta-se que
Sinhô, autodidata por natureza e incapaz de ler uma nota sequer, teria se
livrado da tarefa respondendo à senhorita que não tocaria a peça porque não se
dava com o autor.
O Enterro do Sinhô
Manuel Bandeira
J. B. Silva, o popular Sinhô dos mais
deliciosos sambas cariocas, era um desses homens que ainda morrendo da morte
mais natural deste mundo dão a todos a impressão de que morreram de acidente.
Zeca Patrocínio, que o adorava e com quem ele tinha grandes afinidades de
temperamento, era assim também: descarnado, lívido, frangalho de gente, mas
sempre fagueiro, vivaz, agilíssimo, dir-se-ia um moribundo galvanizado
provisoriamente para uma farra. Que doença era a sua? Parecia um tísico nas
últimas. Diziam que tinha muita sífilis. Certamente o rim estava em pantanas. Fígado
escangalhado. Ouvia-se de vez em quando que o Zeca estava morrendo. Ora em
Paris, ora em Todos os Santos, subúrbio da Central. E de repente, na Avenida, a
gente encontrava o Zeca às três da madrugada, de smoking, no auge da excitação
e da verve. Assim me aconteceu uma vez, e o que o punha tão excitado naquela
ocasião era precisamente a última marcha carnavalesca de Sinhô, o famoso
Claudionor...
que pra sustentar família
foi bancar o estivador...
foi bancar o estivador...
Me apresentaram a
Sinhô na câmara-ardente do Zeca. Foi na pobre nave da igreja dos pretos do
Rosário. Sinhô tinha passado o dia ali, era mais de meia-noite, ia passar a
noite ali e não parava de evocar a figura do amigo extinto, contava aventuras
comuns, espinafrava tudo quanto era músico e poeta, estava danado naquela época
com o Vila e o Catulo, poeta era ele, músico era ele. Que língua desgraçada!
Que vaidade! mas a gente não podia deixar de gostar dele desde logo, pelo menos
os que são sensíveis ao sabor da qualidade carioca. O que há de mais povo e de
mais carioca tinha em Sinhô a sua personificação mais típica, mais genuína e
mais profunda. De quando em quando, no meio de uma porção de toadas que todas
eram camaradas e frescas como as manhãs dos nossos suburbiozinhos humildes,
vinha de Sinhô um samba definitivo, um Claudionor, um Jura, com um “beijo puro
na catedral do amor”, enfim uma dessas coisas incríveis que pareciam descer dos
morros lendários da cidade, Favela, Salgueiro, Mangueira, São Carlos, fina-flor
extrema da malandragem carioca mais inteligente e mais heróica... Sinhô!
Ele era o traço mais expressivo ligando os poetas, os artistas, a sociedade fina e culta às camadas profundas da ralé urbana. Daí a fascinação que despertava em toda a gente quando levado a um salão.
Vi-o pela última vez em casa de
Álvaro Moreyra. Sinhô cantou, se acompanhando, o “Não posso mais, meu bem, não
posso mais”, que havia composto na madrugada daquele dia, de volta de uma
farra. Estava quase inteiramente afônico. Tossia muito e corrigia a tosse
bebendo boas lambadas de Madeira R. Repetiu-se a toada um sem número de vezes.
Todos nós secundávamos em
coro. Terán , que estava presente, ficou encantado.
Não faz uma semana
eu estava em casa de um amigo onde se esperava a chegada de Sinhô para cantar
ao violão. Sinhô não veio. Devia estar na rua ou no fundo de alguma casa de
música, cantando ou contando vantagem, ou então em algum botequim. Em casa é
que não estaria; em casa, de cama, é que não estaria. Sinhô tinha que morrer
como morreu, para que a sua morte fosse o que foi: um episódio de rua, como um
desastre de automóvel. Vinha numa barca da Ilha do Governador para a cidade,
teve uma hemoptise fulminante e acabou.
Seu corpo foi
levado para o necrotério do Hospital Hahnemanniano, ali no coração do Estácio,
perto do Mangue, à vista dos morros lendários... A capelinha branca era muito
exígua para conter todos quantos queriam bem ao Sinhô, tudo gente simples,
malandros, soldados, marinheiros, donas de rendez-vous baratos, meretrizes,
chauffeurs, macumbeiros (lá estava o velho Oxunã da Praça Onze, um preto de
dois metros de altura com uma belida num olho), todos os sambistas de fama, os
pretinhos dos choros dos botequins das ruas Júlio do Carmo e Benedito Hipólito,
mulheres dos morros, baianas de tabuleiro, vendedores de modinhas... Essa gente
não se veste toda de preto. O gosto pela cor persiste deliciosamente mesmo na
hora do enterro. Há prostitutazinhas em tecido opala vermelho. Aquele preto,
famanaz do pinho, traja uma fatiota clara absolutamente incrível. As flores
estão num botequim em frente, prolongamento da câmara-ardente. Bebe-se
desbragadamente. Um vaivém incessante da capela para o botequim. Os amigos
repetem piadas do morto, assobiam ou cantarolam os sambas (Tu te lembra daquele
choro?). No cinema d'a Rua Frei Caneca um bruto cartaz anunciava "A Última
Canção" de Al Johnson. Um dos presentes comenta a coincidência. O Chico da
Baiana vai trocar de automóvel e volta com um landaulet que parece de casamento
e onde toma assento a família de Sinhô. Pérola Negra, bailarina da companhia
preta, assume atitudes de estrela. Não tem ali ninguém para quebrar aquele
quadro de costumes cariocas, seguramente o mais genuíno que já se viu na vida
da cidade: a dor simples, natural, ingênua de um povo cantador e macumbeiro em
torno do corpo do companheiro que durante tantos anos foi por excelência
intérprete de sua alma estóica, sensual, carnavalesca.
Na crônica acima, extraída do livro
“Os Reis Vagabundos e mais 50 crônicas”, Editora do Autor, Rio de Janeiro,
1966, pág. 11, ele narra sua convivência em vida com o famoso compositor da
música popular brasileira, Sinhô, que muitos dizem ser o autor do primeiro samba,
e a cena de seu velório, o que a faz uma peça descritiva de alto valor.
Manuel Bandeira: sua
vida e sua obra estão em "Biografias".
Jura
Composição de Sinhô
Jura, jura, jura pelo Senhor.
Jura pela imagem da Santa Cruz,
Jura pela imagem da Santa Cruz,
Do Redentor, pra ter valor a tua
jura.
Jura, jura, jura de coração,
Para que um dia eu possa dar-te o meu amor,
Sem mais pensar na ilusão.
Daí então dar-te eu irei
O beijo puro na catedral do amor*
Dos sonhos meus, bem junto aos teus,
Para fugir das aflições da dor.
Jura, jura, jura pelo Senhor.
Jura pela imagem da Santa Cruz,
Jura, jura, jura de coração,
Para que um dia eu possa dar-te o meu amor,
Sem mais pensar na ilusão.
Daí então dar-te eu irei
O beijo puro na catedral do amor*
Dos sonhos meus, bem junto aos teus,
Para fugir das aflições da dor.
Jura, jura, jura pelo Senhor.
Jura pela imagem da Santa Cruz,
Do Redentor, pra ter valor a tua
jura.
Jura, jura, jura de coração,
Para que um dia eu possa dar-te o meu amor,
Sem mais pensar na ilusão.
Jura, jura, jura de coração,
Para que um dia eu possa dar-te o meu amor,
Sem mais pensar na ilusão.
* Um beijo puro na
catedral do amor, vocês sabem onde é...
P.S. Gravada, originalmente em
1928, na Odeon, por Mário Reis, acompanhado pela Orquestra Pan American, e
lançada em discos 78 rpm.
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