quinta-feira, 30 de março de 2017

Noite Santa


Selma Lagerlöf


Naquela noite um pobre saiu a implorar auxílio, batendo de porta em porta:

‒ Socorrei-me, boas almas! Em minha casa acaba de nascer uma criança e eu preciso acender o lume (1) para aquecer a minha esposa e o pequenino. Dai-me um pouco de brasa, pelo amor de Deus!

Mas era alta noite. Toda gente estava a dormir e ninguém lhe respondia. De repente o homem avistou, ao longe, um clarão e, caminhando para lá, encontrou uma fogueira acesa e, a volta dela, um rebanho de carneiros brancos dormindo e um velho pastor a guardá-los, também mergulhado no sono.

Quando o homem que andava em busca de brasa chegou ao pé dos carneiros, a bulha (2) dos seus passos acordou três canzarrões que dormiam aos pés do pastor.

As largas bocas dos rafeiros (3) abriram-se; para ladrar, mas nenhum som saiu delas. O homem notou que o pelo dos ferozes animais se eriçava e que as suas presas aguçadas luziam ao clarão da fogueira. E todos três se atiraram assanhados contra ele. Um abocanhou-lhe uma perna, outro a destra, (4) e o terceiro segurou-o a garganta; mas as mandíbulas dos molossos (5) ficaram inertes e o homem não foi mordido.

Quis ele, então, aproximar-se mais do fogo, para de lá tirar algumas brasas. Porém os carneiros eram tantos e estavam deitados tão juntinhos, que não havia como passar por entre eles. Foi-lhes forçoso pisá-los para avançar e nenhum deles acordou nem se mexeu.

Quando o homem chegou ao pé da fogueira, o pastor que dormitava em sua enxerga (6) de peles, ergueu-se impetuoso e irado. Era criatura ruim e mal-encarada. Ao ver ali o desconhecido, agarrou-o, lesto, (7) enorme pedra e arremessou-a contra ele. O perigoso seixo partiu direto ao homem; quando ia, porém, atingi-lo, desviou-se e foi espatifar-se no chão.

Então o homem, aproximando-se dos pastos, falou-lhe assim:

‒ Compadece-te de mim, amigo, e deixa-me levar algumas brasas. Em minha casa acaba de nascer uma criança e eu preciso acender o lume para agasalhar a minha esposa e o pequenino.

O primeiro impulso do pastor foi o de uma recusa cruel; pensou, porém, nos cães que não tinham ladrado nem mordido; nos cordeiros que não tinham fugido; na pedra que não tinha querido ferir o homem. E sentiu um terror vago, indefinível.

‒ Leva o que quiseres ‒ respondeu secamente.

Ora, o lume estava agora quase a apagar-se. Nem ramos a arder, nem achas grandes. Só havia um monte de brasas miúdas, e o homem não tinha pá, nem qualquer outra coisa em que pudesse levá-las. Ao ver isto, o pastor disse:

‒ Podes apanhar as brasas que quiseres!

Mas no íntimo regozijava-se, maldoso, certo de que o homem não poderia levar um braseiro nas mãos nuas. Mas o outro abaixou-se, afastou as cinzas, tomou de uma porção de carvões incandescentes, e pô-los numa aba da esfarrapada túnica. E as brasas não lhe queimaram as mãos, não lhe queimaram as vestias e ficaram a brilhar nelas como rútilos rubis. E o desconhecido partiu.

O pastor vendo tudo isso, disse de si para consigo:

‒ Mas, que noite é esta, em que os cães não mordem e os carneiros não se espantam, e a pedra não fere, e as brasas não queimam? Foi ao encalço do homem e interrogou-o:

‒ Que noite é esta em que até as próprias coisas se mostram inclinadas ao amor e à piedade?

O homem respondeu:

‒ É a noite de Natal, meu amigo. Jesus, o Salvador, acaba de nascer.



Glossário:


(1) Lume: fogo

(2) Bulha: confusão de sons

(3) Rafeiros: cães treinados para guardar ovelhas

(4) Destra: mão direita

(5) Molossos: espécie de cães de fila

(6) Enxerga: colchão rústico

(7) Lesto: ligeiro

Selma Ottilia Lovisa Lagerlöf (Mårbacka, Östra Ämtervik20 de novembro de 1858 – Mårbacka, 16 de março de 1940) foi uma escritora sueca, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 1909. É um dos escritores suecos mais lidos, e com maior sucesso internacional. 

Selma Lagerlöf foi a primeira mulher a ser membro da Academia Sueca, em 1914. 

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