Moacyr Scliar
Pandorgas por Uberti
Eu estava a fim nem sei de quê. Nem
sei de quê, mesmo, de tão cheio que eu estava: cheio do trabalho, cheio do
patrão.
Foi aí que me veio uma ideia da pandorga.
Que boa ideia, cara! Como foi que me ocorreu? Não sei. Olhando para os meus
braços, acho. Estavam finos como varas; e as pernas também. Cuidado com o vento de setembro, dizia a
velha minha mãe, vai acabar te carregando.
Feito pandorga. Aí está: Pandorga.*
Fui falar com o patrão. Pandorga? Gostou da ideia. Riu. Foi a
primeira vez que vi aquele homem rindo. Agora, só agora, sei por que ele ria. É
que estava se lembrando dele menino, soltando pandorga. Isto foi há muito
tempo. Antes de ele mandar na gente.
Ele gostando da ideia, eu deitei no
chão, de barriga para cima. Ele trouxe um rolo de barbante grosso, forte. Eu
abri bem os braços, e estiquei as pernas.
O primeiro nó foi no meu pulso
esquerdo. Um nó duplo, muito forte. Ainda
não esqueci como é que se dá nós,
ele disse, sorrindo sempre. Eu ri também. Pela primeira vez estávamos nos
entendendo. Ele não estava me chamando de preguiçoso nem de ladrão. Estava
brincando comigo. Aquilo estava muito bom.
O segundo nó foi no tornozelo
esquerdo, o terceiro no tornozelo direito – estes, nós simples. O nó do pulso
direito foi duplo, como o do esquerdo. Estava pronta a armação.
Eu sempre fiz pandorga com papel
forte; e disse isto para ele, que pandorga, para mim, tinha de ser de papel
forte. Mas ele piscou o olho; tenho outra
ideia, disse, e então eu pensei que ele queria usar a minha pele, esta
pelanca frouxa que me ficou nos braços e no pescoço, depois que emagreci.
Mas não era a pele, não. Era o pano
da túnica, desta túnica folgada que eu uso. Fiquei contente – ele agora não
estava criticando a minha roupa, ele estava bem satisfeito com a minha roupa.
Esticou o pano e costurou-o em torno
ao cordel que ia dos pulsos aos tornozelos. Trabalhou bem, sorrindo sempre, e
assobiando. Estava feliz mesmo.
Aí fez a guia da pandorga: três
pedaços de barbante. Um preso em laçada ao meu pescoço (ele cuidou para não
apertar muito). Os outros dois pedaços, prendeu aos meus pulsos. Pescoço, pulso,
pulso: os três pontos mais convenientes. Ele sabia mesmo fazer uma pandorga.
Deu um nó, juntando as pontas livres dos barbantes, e estava pronta a guia.
Nesta ele amarrou a ponta de um
grande rolo de barbante. Tenho duzentos
metros aqui, ele disse, e eu não acreditei. Depois vi que era mesmo verdade.
Então me pôs de pé, recomendando que
não me mexesse. Fiquei duro, imóvel, o vento forte de setembro enfunando a
túnica. Estávamos no gramado em frente à metalúrgica. Um lindo gramado. Uns cem
metros de gramado.
Ele correu, desenrolando o barbante.
De súbito, senti um forte abalo. Eu subia! Funcionava, eu, como pandorga! E já
flutuava sobre bosques e colinas, a pandorga!
Lá de baixo ele abanava para mim. Eu
não podia abanar em resposta, mas esperava que ele visse o sorriso radiante em
meu rosto. Porque eu via a felicidade no rosto dele. Era a primeira vez que eu
o via alegre, aquele homem pequeno e triste.
Deu dois puxões na guia; quase me
estrangula! Mesmo assim respondi, atirando duas vezes a cabeça para trás. Era o
nosso código, enfim, nos entendíamos.
Ele me dava linha. Eu agora estava
muito alto; o vento forte me sacudia todo. Mas eu aguentava firme. Eu era a
armação.
Anoitecia. Eu sabia que ele tinha de
voltar para casa... Ele voltou. Amarrou a ponta do barbante ao tronco de uma
árvore. Ali fiquei, toda a noite, flutuando no espaço negro, olhando as luzes
lá embaixo, e as estrelas acima de minha cabeça.
Bonito, aquilo.
Eu não queria mais descer. Agora que
sabia das coisas, eu não queria mais descer.
E não desci: até hoje estou aqui.
Aquele pontinho escuro no céu? Sou
eu.
*****
(Do livro “Cadernos
de Cultura Gaúcha – 5 contistas”)
Moacyr Scliar por
Fraga
Nascimento:
23 de março de 1937, Porto Alegre,
Rio Grande do Sul
Falecimento:
27 de fevereiro de 2011, Porto Alegre,
Rio Grande do Sul
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