João
Lóes
Pesquisas
históricas e teológicas tentam reconstruir o dia-a-dia da mãe de Jesus. Mas
muitos fatos continuam envoltos em mistério,
Maria* é a figura feminina mais
reverenciada da história da humanidade. Mas muito pouco se sabe sobre ela. Dois
mil anos depois, sua existência continua envolta em mistério. Sabe-se
que ela era uma dona-de-casa judia que morava na vila de Nazaré, na Galileia,
povoado colonizado pelos romanos. Criava galinhas no fundo do quintal e acordava
com o barulho delas, ainda de madrugada, para iniciar suas atividades
domésticas. Vivia em condições muito simples. Dormia em uma esteira, num chão
de terra batida sobre a palha, numa casa que cheirava a óleo queimado,
proveniente de uma lamparina que ela mantinha acesa, acomodada em uma cavidade
na parede. Vestia o mesmo traje, independentemente da ocasião: uma túnica de
linho, com a qual realizava seus afazeres ou saía para alguma atividade, sem
esquecer de colocar o véu, em respeito ao marido. Era uma mãe zelosa e
dedicada, que sempre tentou manter o filho próximo de si. Durante a infância de
Jesus, gostava que o garoto ajudasse o pai, José, na oficina. Caso não houvesse
trabalho, ela recrutava a criança para ajudar nas tarefas domésticas, como fazer
farinha de cevada, buscar água na fonte e limpar a casa, que só tinha um
cômodo.
Apesar de nunca esquecer que estava
criando o filho de Deus, o Messias, nascido para salvar os homens, ela não se
intimidava em
recriminá-lo. E o fez diversas vezes durante toda a sua vida.
Ralhava em público com o menino, principalmente depois que ele desenvolveu o
hábito de dar umas escapadas para o templo, a partir dos 12 anos. Mais tarde,
quando o rebento já tinha 30 anos, o intimou a providenciar alimento e bebida
que haviam acabado durante um casamento, num dos episódios mais conhecidos do
cristianismo, o primeiro milagre, das bodas de Caná da Galileia. Também há
relatos de discussões entre mãe e filho, quando Jesus era jovem e ainda não
havia saído em pregação.
Num primeiro momento, ele se levantava e saía, deixando a mãe
falando sozinha, mas Maria o chamava aos gritos e ele voltava atrás.
Como esposa, era uma mulher submissa,
como todas de sua época. Casou-se aos 12 anos com José, um carpinteiro muito
mais velho do que ela. Acordava mais cedo do que ele para fazer seu ritual
diário de higiene esfregar rosto e cabelos com óleo e fazer tranças no cabelo ‒,
mas fazia de tudo para não incomodá-lo com seu barulho. Quando, finalmente, ele
despertava, dobrava a esteira onde ele havia dormido e aguardava, silenciosa, o
marido fazer as orações com Jesus, ritual que costumava demorar cerca de 20
minutos. Depois que ele seguia para o trabalho, iniciava uma pesada rotina
doméstica – varrer, limpar, cozinhar. Era tudo calculado, para não atrasar a
primeira refeição do dia, um pão com legume ou peixe. No almoço, estendia a
esteira para que marido e filho se sentassem, mas não se alimentava com eles.
Ficava em pé, esperando. Esteve ao lado de José durante toda a vida dele, mas
estudiosos presumem que ele tenha morrido bem antes dela e nem tenha
presenciado as pregações do filho.
Para tentar reconstruir os passos de
Nossa Senhora, pesquisadores buscam informações na Bíblia, em estudos
históricos da política, dos costumes regionais, da religiosidade e da vida
privada dos judeus, e nos evangelhos apócrifos, que nada mais são do que
relatos extra-oficiais da vida dos primeiros cristãos.
Nenhum apócrifo foi dedicado
exclusivamente a Maria, mas o de Thiago dá detalhes de sua vida que não constam
em nenhum dos textos aceitos pela Igreja Católica como oficiais. Nele, a
história da mãe de Jesus é contada desde sua concepção até o parto do futuro
Messias, em Belém. Lá
também estão os nomes dos pais de Maria, Ana e Joaquim, reconhecidos pela
Igreja como informação verídica (tanto que os dois viraram santos). Ficção para
uns, realidade para outros, eles pouco ajudam na hora de tentar elucidar
algumas fases da vida de Maria. Praticamente nada se sabe sobre a infância
dela, por exemplo. Apenas indicações de que pertencia a uma família de classe
média, filha única de um casal que já havia perdido as esperanças de ter
filhos. Também há indicações de que ela tenha passado grande parte da infância em templos. Era uma
menina religiosa e devotada, muito ligada à família.
Apesar do comportamento doce e
generoso que ela demonstrou ter desde a infância e que a acompanhou durante
toda sua vida, Maria também foi uma mulher atuante e participativa. Quando
Jesus, aos 30 anos, decidiu sair em pregação e revelar ao povo que era o filho
de Deus, ela continuou muito próxima dele. Costumava dar conselhos e broncas,
mas também tratava de estimulá-lo nos momentos mais difíceis, quando ele desanimava,
sentia medo ou dor. “Ela acreditava piamente em tudo o que ele falava e queria
ajudá-lo em sua missão”, virgem durante toda sua vida. Para isso, apontam
trechos nos evangelhos de Lucas e Marcos que falam sobre os irmãos de Jesus,
entre outras evidências.
Muitos especialistas também se
recusam a acreditar no dogma da concepção imaculada, estabelecido pelo papa Pio
IX, em 1854, segundo o qual Nossa Senhora não só se manteve pura como foi
concebida assim, tendo ficado livre do pecado original. Terreno pantanoso,
onde, de um lado, há os que analisam os fatos a partir da fé, e de outro, os
que usam apenas a razão para entender a história.
Unanimidade entre os estudos dos
evangelhos canônicos e apócrifos, dos levantamentos históricos e das pesquisas
acadêmicas é a percepção simultânea de grandeza e humildade na personalidade de
Maria. E é na descrição de seu cotidiano prosaico que reside toda a riqueza
dessa figura religiosa e histórica, pois isso rediz a teóloga Lina Boff,
professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro. Era uma
mãe na sua plenitude, como todas as outras mulheres do povo. Permaneceu ao lado
do filho quando ele agonizou na cruz. E continuou fiel às suas palavras, sem
temer as perseguições. Era tão importante e respeitada entre os primeiros
cristãos que estavam presentes no dia de Pentecostes, ao lado dos apóstolos,
nesta que é considerada oficialmente como a data de início do cristianismo. Não
se sabe por quanto tempo Maria viveu, mas há outro dogma estabelecido pela
Igreja Católica (papa Pio XII, em 1950), que afirma que seu corpo ascendeu aos
céus.
Assim como há mistérios que envolvem
a vida de Nossa Senhora, há também muita polêmica. Contrariando o discurso
oficial católico, muitos estudiosos garantem que ela teve outros filhos com
José e, portanto, não permaneceu força seu vínculo com a cansativa realidade
vivida pela maioria de seus devotos. “Maria é uma pessoa que, como nós, não
nasceu pronta. Ela aprende e amadurece. E é na humanidade dela que a gente
descobre todas as suas qualidades”, resume Afonso Murad, professor de teologia
no Instituto Teológico do Estado de São Paulo. Assim, tornou-se um modelo
atemporal de qualidades ao alcance dos homens. Independentemente de suas
crenças.
* Maria: 15 a .C. ‒ 57 d.C. – segundo
pesquisa de alguns historiadores.
(IstoÉ
Independente)
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