Ela conheceu o
maestro em 1968 no bar Veloso
e ficou conhecida por ter inspirado “Lígia”
11.01.2016 – em O Globo
A boca é carnuda e aparece no retrato
em preto e branco meio entreaberta, num leve sorriso, mostrando os dentes
grandes. O cabelo é solto e despenteado e, na mão, ela segura um cigarro. Mas a
arma da femme fatale está nos olhos: grandes, de ressaca, que tragam tudo, como
Capitu. Tom Jobim trocou o verde pelo castanho, mas teria traduzido o olhar
após cruzar com ele pela primeira vez numa tarde chuvosa no bar Veloso: “Mas
teus olhos castanhos/Me metem mais medo que um dia de sol/É... Lígia... Lígia”.
A foto ficou escondida por 19 anos,
período em que a Lígia da música (na verdade, Lygia Marina de Moraes) esteve
casada com o escritor Fernando Sabino, que morria de ciúmes dela. A fotografia,
de 1971, foi feita por seu primeiro marido, o cineasta Fernando Amaral, e é um
retrato da Lygia que fulminou corações e foi eternizada como uma das musas de
Tom, que idealizou em “Lígia” um amor que nunca aconteceu. “Eu nunca sonhei com
você/Nunca fui ao cinema/Não gosto de samba, não vou a Ipanema/Não gosto de
chuva nem gosto de sol”.
O quadro está na parede de um dos
quartos do seu apartamento, na Rua Joaquim Nabuco, em Ipanema.
‒ Fernando (Sabino) achava que era
foto de uma devassa, de uma mulher boêmia com um cigarro na mão e olhar de
mormaço ‒ afirma a musa de grandes olhos verdes, que tem 1,75 de altura e
nenhuma plástica.
Aos 68 anos, mãe do fotógrafo Luís
Moraes (filho de Amaral) e avó de Sara e Lucas (de 2 e 4 anos), ela conserva,
além da beleza, um ar brejeiro. Diretora da Casa de Cultura Laura Alvim desde
2007 (no dia 1º de fevereiro, como consequência da dança das cadeiras no
governo do estado, ela deixará o cargo), Lygia conta, sentada na sala de seu
apartamento, com vista para uma linha de mar sobre os prédios vizinhos e
iluminada pelo sol de fim de tarde, que com Tom rolou só um beijo.
Era 1968 e Lygia tinha namorado,
enquanto Tom era casado. O encontro, que teria motivado um amor platônico do
maestro, é descrito no livro recém-lançado “Musas de músicas: a mulher por trás
da canção” (Editora Tinta Negra), da jornalista Rosane Queiroz. Os dois se
conheceram no Veloso. Ela tomava um chope com uma amiga, depois de deixar a
escola onde dava aula. Tom, em outra mesa, passou a trocar olhares e, num certo
momento, foi até ela.
‒ Eu disse para ele: “é uma
coincidência encontrar você aqui. Acabei de sair do colégio e a Beth (filha do
Tom) é minha aluna. Ele teve um ataque de risos e falou: “é a primeira vez na
minha vida que uma paquera vira reunião de pais e mestres” ‒ lembra Lygia,
rindo como se tivesse sido ontem.
Muitos chopes depois, ele chamou as
duas para irem com ele até a casa de Clarice Lispector, no Leme, onde Tom
terminaria de dar uma entrevista.
‒ Quase morri! Como pode, na mesma
noite, conhecer o Tom e ser apresentada a Clarice pelo Tom? ‒ diz Lygia,
recordando que Clarice não gostou nada da história e que, horas depois, ele deu
uma carona até sua casa, em Botafogo, num Fusca azul. ‒ Tom me deixou em casa,
me deu um beijo, claro, mas imagina se eu, uma menina, ia me meter nessa
confusão!
Poema assinado
Tom deixou de lembrança daquele dia
um poema, escrito na casa de Clarice Lispector, que foi emoldurado por Lygia e
leva a assinatura A.C.J. “Teus olhos verdes são maiores que o mar/Se um dia eu
fosse tão forte quanto você/Eu te desprezaria e viveria no espaço/Ou talvez
então eu te amasse/Ai que saudade me dá/Da vida que eu nunca tive”. Já a versão
de que Tom escreveu “Lígia” inspirado nela não é aceita por todos. Depois de
lançar uma biografia de Fernando Sabino, o jornalista Arnaldo Bloch recebeu um
telefonema de Chico Buarque contestando a tese.
A foto que irritava Fernando Sabino – Reprodução
Lygia diz que, tempos após o flerte
no Veloso, Tom ligou para Sabino pedindo o telefone dela, sem saber que os dois
estavam juntos. O escritor teria dado o número errado não só uma, mas duas
vezes. Desse caso, ela afirma que nasceu o verso: “e quando eu lhe telefonei,
desliguei, foi engano”. Parceiro de Tom, Chico disse que quem compôs esse verso
foi ele.
Para Rosane
Queiroz, Lygia não é menos musa de Tom com a polêmica:
‒ Para mim, o Tom tinha uma atração
platônica pela Lygia, e isso ficou conscientemente ou inconscientemente
impresso na letra ‒ diz Rosane, recordando que Ruy Castro já registrou em livro
que Tom vivia de olho em Lygia.
A entrevista para o “Musas de
Músicas” aconteceu no Astor, em Ipanema, e Rosane lembra que Lygia chegou como
se houvesse “comprado o bar”, parando o lugar:
‒ Ser musa é um estado de espírito,
que Lygia traduz muito bem. Ela chega e não passa despercebida e, ao mesmo
tempo, não faz questão de chamar atenção. Ela está sempre muito bem humorada,
sorrindo e muito bem acompanhada. Tem amigos, amores... Musa é isso aí!
A vida da musa deu uma reviravolta na última
semana, quando foi avisada pela nova secretária de Cultura, Eva Doris, que
deixará a Laura Alvim, espaço com três cinemas, duas salas de teatro e galeria
de arte. Ela ainda não sabe exatamente os rumos que a vida vai tomar a partir
de fevereiro, mas quer continuar trabalhando, até porque “precisa viajar":
‒ Tenho duas coisas de que não abro
mão: viagens e meu uísque ‒ diz Lygia, que já foi dos “Estados Unidos ao
Japão”.
Bom humor e ternura
Ela está hoje no terceiro casamento. O
primeiro acabou porque era muito jovem para lidar com os altos e baixos da vida
de um cineasta. O segundo, com Sabino, terminou tumultuado, com o escritor
retirando de sua obra todas as menções à ex-mulher. Foi decisão dela se
separar, o que aconteceu depois de o escritor sofrer um massacre pelo
lançamento do livro sobre a ex-ministra Zélia Cardoso de Mello:
‒ Ali ele começou a ir ladeira
abaixo. Ficou recluso, não via os amigos, não saía mais de casa. Ele não soube
lidar, foi uma pena. E eu caí fora.
Ela e o
marido José Luiz Peixoto, de 73 anos, moram em casas separadas.
‒ Lygia é muito inteligente,
informada, e, acima de tudo, terna. Ela tem humor, um modo gostoso de viver.
Ultrapassa bem as dificuldades, assim como faz com os maridos! ‒ diz o
advogado, espirituoso como a mulher. ‒ Deve ter virado a cabeça de muitos
homens...
Se pudesse, ela agora cairia fora é do Rio.
Ainda toma chope na Fiorentina, mas não vai mais à praia, nem curte o verão
carioca e o carnaval. As queixas vão da areia cheia ao jeito de vestir dos
cariocas (“me incomoda essa coisa do Rio balneário”), passando pelos serviços
(“as pessoas não são treinadas para nada”).
‒ O Rio acabou. Eu vivo dizendo
isso, e as pessoas ficam injuriadas. A inadequação carioca extrapolou ‒ reclama
Lygia, cujas críticas costumam causar estranhamento. ‒ Ainda carrego essa cruz
de garota de Ipanema! Talvez por eu ser, eu possa reclamar.
Era fim de tarde na terça-feira e Lygia
servia um uísque para ela e o marido na sala, uma espécie de galeria da sua
história, com muitos quadros nas paredes (inclusive um de Tom), CDs na estante
e livros espalhados pelo chão. Por fim, revela que pensa em escrever um livro
com crônicas e memórias. O título? Talvez “Quase 70”:
‒ Seria uma condensação dessa vida
tão eclética. Eu vivi, chorei, me apaixonei. Minha vida é tão divertida!
Ligia
Tom Jobim
Eu nunca sonhei com você,
Nunca fui ao cinema.
Não gosto de samba, não vou a
Ipanema,
Não gosto de chuva nem gosto de
sol.
E quando eu lhe telefonei,
desliguei foi engano,
O seu nome não sei.
Esqueci no piano as bobagens de
amor
Que eu iria dizer, não... Lígia...
Lígia...
Eu nunca quis tê-la ao meu lado
Num fim de semana.
Um chope gelado em Copacabana,
Andar pela praia até o Leblon.
E quando eu me apaixonei,
Não passou de ilusão, o seu nome
rasguei.
Fiz um samba canção das mentiras
de amor
Que aprendí com você...
É... Lígia... Lígia...
*Você se aproxima de mim
Com esses modos estranhos e eu
digo que sim.
Mas teus olhos castanhos,
Me metem mais medo
que um dia de sol
É... Lígia... Lígia...
**E quando você me envolver
Nos seus braços serenos,
Eu vou me render,
Mas seus olhos morenos
Me metem mais medo que um raio de
sol
É... Lígia... Lígia...
* 1ª versão;
**2ª versão.
Lygia e Tom Jobim
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