Para muito além das pandorgas*
Eu queria de novo meu caniço
lambarizeiro, cuja taquarinha fina apodreceu num galpão depois que abri as asas
e me mandei para outros pagos em busca de oportunidades que imaginava serem
muitas. Nunca mais o encontrei, caniço da minha infância, que me acompanhava
naqueles verões em riachos, sangas e açudes da Vila Rica, tão verdejante e
amiga, hoje revirada em lavouras, com os mananciais destroçados por pesticidas,
sem as matas nativas. Com aquele caniço tirei da água centenas de lambaris
prateados, reluzentes como a vida que imaginava ter pela frente, mas que com o
passar dos anos se mostrou bem menos luzidia e brilhante.
Sonho com as pandorgas que soltava ao
vento nas manhãs de domingo, dando corda e linha, fazendo ziguezague no céu,
sumindo lá nas grimpas, e eu cá embaixo, sonhando horizontes. Porque bem depois
daquelas paragens onde ainda temos vista, existem outras, com muito mais
lonjura, com muito mais alegria, com muito mais ausências, onde só chegamos
montados no pensamento. Mas eu era frequentador assíduo, ia sempre, porque além
das pandorgas, dos pássaros, das nuvens e das estrelas, estava minha
imaginação. Eu via tantas coisas naquele céu, no meu universo azulado repleto
de tintas e cores, retrato de um guri que possuía um entardecer e duas mãos
cálidas. Uma flor seca caída num pátio ou pássaros sentados num fio de arame,
na pauta dos aramados que somem na bruma das várzeas nas longas tardes de
outono.
Queria, outra vez, minha bola de couro
costurada a tento de lonca de potro, que quando encharcava, deixava vergões
pelo corpo. Cadê a pelota amiga, companheira daquelas tardes domingueiras
sumidas na poeira do tempo? Foram tantos gols, jogadas inesquecíveis,
brincadeiras, goleiras feitas com moirões, traves de eucalipto ou improvisadas
com tijolos, chinelos, bostas secas, qualquer coisa, porque uma criança renova
o mundo com uma borboleta na mão. Um dia, quando já crescido, esqueci minha
velha bola de couro num canto qualquer, precisei pensar como homem, tive que
enfrentar meus desafios, os novos compromissos e me perdi. Nunca mais me
encontrei, deixei de ser um craque das peladas de potreiro para virar um perna
de pau do asfalto, dos apartamentos, da vida corrida e sem brinquedos em cidades
grandes. Me transformei em tantas porcarias, porque a felicidade havia ficado
lá para sempre.
Queria de volta meu caniço, queria
pandorga e a bola de couro para ser criança como fui há tantos anos. Queria
cavalo de taquara, tropa de osso, aro de ferro, bolitas e carretinha de lata.
Ah, eu reanimo o guri que ainda vive de calça curta e pé no chão dentro de mim.
Não, ele não pode envelhecer e bater as botas. Te levanta! Olha lá fora, teus
amigos estão te esperando… Vieram quase todos, veja bem… o Clécio, o Ronaldo, o
Carlinhos, o Valter, o Miguelzinho, o Zé Mariano, o Corvinho, o Jacaré, o
Chupim, o Claudinho, o Chibo e o Lebrão… Que gurizada medonha veio te abraçar.
Não chores. Se chorares eles somem, desaparecem outra vez, porque para vê-los
tu tens que rir, pular de alegria, como faz todo guri que reencontra, muitos
anos depois, os amigos perdidos…
(De Paulo Mendes da
coluna Campereada do Correio do Povo)
*Uma das crônicas vencedoras do Prêmio ARI de jornalismo de
2016.
Sobre o autor
→ Nasci na véspera do Natal de
1962, em Cacequi (RS), mas dos três aos 18 anos vivi numa chácara na zona rural
de Júlio de Castilhos (RS). Sempre gostei de ler e escrever, desde que fui
alfabetizado. No bolicho beira de estrada da minha família, conheci, ainda
guri, os deserdados da sorte, gente humilde e trabalhadora que encharcava suas
desesperanças nos copos de canha. De certa forma, tornei-me jornalista para
ajudar essa gente sem voz. Agora as palavras deles ressoam nas crônicas, nos
contos e nos causos escritos com alma, couro e coração dessas “campereadas”.
→ Já trabalhei em diversos órgãos
de imprensa, jornais, rádios e revistas, mas foi no centenário Correio do Povo,
de Porto Alegre, que fiz minha segunda casa desde 1990. E desde 2009 escrevo a
coluna “Campereada” no Correio Rural, todos os domingos. Em 2011, foi lançada
pela Sulina a coletânea “Campereadas ‒ Crônicas, contos e causos do Sul”, e no
ano passado “Campereadas 2 ‒ Couro, alma e coração”. Aprecio toda e qualquer
boa literatura, mas confesso que as coisas do Sul são as que mais me comovem.
Por isso, sempre que posso, sigo as pegadas de João Simões Lopes Neto, Luiz
Sérgio Metz e Jayme Caetano Braun, que considero meus mestres. Tive muitas
decepções e tristezas, mas também muitas alegrias na vida. E, por pachola que
sou, sempre que um novo dia amanhece, monto no meu pingo imaginário e sigo a
galope, no rumo de meus infinitos.
Nota do Almanaque Cultural Brasileiro
Eu, como assinante do Correio do
Povo, tenho todos os livros do cronista Paulo Mendes, um admirável seguidor de
João Simões Lopes, o nosso melhor escritor regionalista. Suas crônicas retratam
bem a vida do homem simples do campo e nossos costumes gauchescos. Recomendo a
leitura de suas “Campereadas”. Elas são ternas, verdadeiras e com um realismo
comovedor.
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