sábado, 7 de janeiro de 2017

Pescas, pandorgas e futebol


Para muito além das pandorgas*


Eu queria de novo meu caniço lambarizeiro, cuja taquarinha fina apodreceu num galpão depois que abri as asas e me mandei para outros pagos em busca de oportunidades que imaginava serem muitas. Nunca mais o encontrei, caniço da minha infância, que me acompanhava naqueles verões em riachos, sangas e açudes da Vila Rica, tão verdejante e amiga, hoje revirada em lavouras, com os mananciais destroçados por pesticidas, sem as matas nativas. Com aquele caniço tirei da água centenas de lambaris prateados, reluzentes como a vida que imaginava ter pela frente, mas que com o passar dos anos se mostrou bem menos luzidia e brilhante.

Sonho com as pandorgas que soltava ao vento nas manhãs de domingo, dando corda e linha, fazendo ziguezague no céu, sumindo lá nas grimpas, e eu cá embaixo, sonhando horizontes. Porque bem depois daquelas paragens onde ainda temos vista, existem outras, com muito mais lonjura, com muito mais alegria, com muito mais ausências, onde só chegamos montados no pensamento. Mas eu era frequentador assíduo, ia sempre, porque além das pandorgas, dos pássaros, das nuvens e das estrelas, estava minha imaginação. Eu via tantas coisas naquele céu, no meu universo azulado repleto de tintas e cores, retrato de um guri que possuía um entardecer e duas mãos cálidas. Uma flor seca caída num pátio ou pássaros sentados num fio de arame, na pauta dos aramados que somem na bruma das várzeas nas longas tardes de outono.

Queria, outra vez, minha bola de couro costurada a tento de lonca de potro, que quando encharcava, deixava vergões pelo corpo. Cadê a pelota amiga, companheira daquelas tardes domingueiras sumidas na poeira do tempo? Foram tantos gols, jogadas inesquecíveis, brincadeiras, goleiras feitas com moirões, traves de eucalipto ou improvisadas com tijolos, chinelos, bostas secas, qualquer coisa, porque uma criança renova o mundo com uma borboleta na mão. Um dia, quando já crescido, esqueci minha velha bola de couro num canto qualquer, precisei pensar como homem, tive que enfrentar meus desafios, os novos compromissos e me perdi. Nunca mais me encontrei, deixei de ser um craque das peladas de potreiro para virar um perna de pau do asfalto, dos apartamentos, da vida corrida e sem brinquedos em cidades grandes. Me transformei em tantas porcarias, porque a felicidade havia ficado lá para sempre.

Queria de volta meu caniço, queria pandorga e a bola de couro para ser criança como fui há tantos anos. Queria cavalo de taquara, tropa de osso, aro de ferro, bolitas e carretinha de lata. Ah, eu reanimo o guri que ainda vive de calça curta e pé no chão dentro de mim. Não, ele não pode envelhecer e bater as botas. Te levanta! Olha lá fora, teus amigos estão te esperando… Vieram quase todos, veja bem… o Clécio, o Ronaldo, o Carlinhos, o Valter, o Miguelzinho, o Zé Mariano, o Corvinho, o Jacaré, o Chupim, o Claudinho, o Chibo e o Lebrão… Que gurizada medonha veio te abraçar. Não chores. Se chorares eles somem, desaparecem outra vez, porque para vê-los tu tens que rir, pular de alegria, como faz todo guri que reencontra, muitos anos depois, os amigos perdidos…


(De Paulo Mendes da coluna Campereada do Correio do Povo)

*Uma das crônicas vencedoras do Prêmio ARI de jornalismo de 2016.

Sobre o autor


→ Nasci na véspera do Natal de 1962, em Cacequi (RS), mas dos três aos 18 anos vivi numa chácara na zona rural de Júlio de Castilhos (RS). Sempre gostei de ler e escrever, desde que fui alfabetizado. No bolicho beira de estrada da minha família, conheci, ainda guri, os deserdados da sorte, gente humilde e trabalhadora que encharcava suas desesperanças nos copos de canha. De certa forma, tornei-me jornalista para ajudar essa gente sem voz. Agora as palavras deles ressoam nas crônicas, nos contos e nos causos escritos com alma, couro e coração dessas “campereadas”.

→ Já trabalhei em diversos órgãos de imprensa, jornais, rádios e revistas, mas foi no centenário Correio do Povo, de Porto Alegre, que fiz minha segunda casa desde 1990. E desde 2009 escrevo a coluna “Campereada” no Correio Rural, todos os domingos. Em 2011, foi lançada pela Sulina a coletânea “Campereadas ‒ Crônicas, contos e causos do Sul”, e no ano passado “Campereadas 2 ‒ Couro, alma e coração”. Aprecio toda e qualquer boa literatura, mas confesso que as coisas do Sul são as que mais me comovem. Por isso, sempre que posso, sigo as pegadas de João Simões Lopes Neto, Luiz Sérgio Metz e Jayme Caetano Braun, que considero meus mestres. Tive muitas decepções e tristezas, mas também muitas alegrias na vida. E, por pachola que sou, sempre que um novo dia amanhece, monto no meu pingo imaginário e sigo a galope, no rumo de meus infinitos.

Nota do Almanaque Cultural Brasileiro

Eu, como assinante do Correio do Povo, tenho todos os livros do cronista Paulo Mendes, um admirável seguidor de João Simões Lopes, o nosso melhor escritor regionalista. Suas crônicas retratam bem a vida do homem simples do campo e nossos costumes gauchescos. Recomendo a leitura de suas “Campereadas”. Elas são ternas, verdadeiras e com um realismo comovedor.

 Nilo da Silva Moraes


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