segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Livre



Decidi renunciar à civilização e seus descontentamentos. Deixo minhas posses para a financeira, minha conta bancária para o imposto de renda, meu seguro de vida e meu exemplo para a família e minhas dívidas para a prosperidade. Rasgarei, em ato público, minha carteira de identidade, minha carteira profissional, meu passaporte, meu atestado de vacinação, licença de motorista, meu título de eleitor, meu certificado de reservista e meu Cartão do Touring. Peço que minha carteira do INSS e meu cartão de CPF sejam queimados e as cinzas espalhadas ao vento. Que meu nome seja sumariamente riscado de todos os cadastros. Depois de dois milhões de anos, volto para o jângal, de onde nunca devia ter saído.

Empenhe-se meu relógio e leiloe-se minha coleção da “Play Boy”. Há um resto de Ballantine na cozinha, que deve ser dividido entre os amigos depois que eu me for. Meus vinhos para o Povo. Do guarda-roupas levo apenas o suficiente para chegar, com um mínimo de recato, até Manaus. Depois a nudez e a selva. Queime-se minhas três gravatas.

Meus livros? Queime-se todos. Não. Vou precisar de alguma coisa para ler no avião. Deixa um policial qualquer, não quero nem saber o título. Não, esse não. Levo, todos os meus livros, isso. Vou desaprender a ler assim que me instalar na minha clareira na Amazônia. Começarei com a “Crítica da Razão Pura” e irei desaprendendo, desaprendendo até a cartilha. Só serei livre quando Eva, a uva e vovó não significarem nada além de riscos pretos numa página branca, e aí queimarei a página. Com quê? É bom levar fósforo. Não sei se vou conseguir fazer fogo por fricção. Aliás, tem um livro aí que ensina a sobreviver na Selva. Esse é melhor guardar.

Vão pedir meus documentos para embarcar no avião. E se eu dissesse, simplesmente, “sou um ser humano sem nome e sem número, meu único documento é esta cara honesta?” Me prendiam, claro. Levo a carteira de identidade. A última concessão. Depois, a liberdade.

Já sei! Vou de carro. Sem parar. Desbravarei matas e pradarias com o meu temível Passat. O meu adeus à engenharia alemã. Irei largando peças e acessórios pelo caminho. Me despindo, simbolicamente, de camadas de civilização. Chegarei à selva montado num esqueleto de máquina, que enferrujará lentamente na umidade, enquanto eu reaprendo a andar sobre os dois pés nus. O homem, que sobreviveu ao dinossauro, certamente sobreviverá ao Volkswagem.

Agora me dei conta de que vai ter espinhos no chão e coisa pior. Melhor levar um estoque de sandálias para os primeiros anos. E, quem sabe, um bom impermeável. Outra coisa: vou precisar de dinheiro para comida, gasolina e pneus no caminho. E minha licença de motorista. E, por via das dúvidas, carteira do Touring.

Então, vamos ver. Livros, fósforos, licença, Touring, sandálias, dinheiro... e só. Nada mais. Queime-se o resto. Vivi milhares de anos sem máquinas e roupas feitas, posso fazer o mesmo outra vez. Me bastam os dentes, o dedão opositor e a imaginação. Vou precisar do relógio, claro. E de uma bússola pra me orientar na selva até aprender a ler a direção nas estrelas e cheirar o vento. Depois, de culturas só me bastará o olfato.

Uma machadinha, um facão, e uma lanterna e um estoque de pilhas até que eu aprenda a enxergar no escuro. pregos e martelos para construir um abrigo. Um canivete suíço. E nada mais. Livre. Só comerei o que caçar e pescar com as próprias mãos. Beberei a água pura das vertentes. Cozinharei a carne e o peixe em espetos de pau-brasil. Vou precisar de sal. Umas latinhas de ervilha, um patezinho, e, muito importante: um abridor de latas. Puxa, e cerveja. E nada mais.

Um homem sozinho com sua fibra e seu poder criador. Só voltarei à civilização se precisar ir ao dentista. Outra coisa: rede de mosquito. E band-aid. Contarei os dias pela passagem do Sol e os meses pelas fases da lua. Aparelho de barbear, lâminas, loção. Me banharei na chuva. Sabonete, tesourinha para unhas. Aspirina. E pomada contra assadura.

Meu Deus, será que tem muita cobra?

Livre. Com uma televisãozinha portátil para não perder o futebol.

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Luís Fernando Veríssimo


Do livro “Crônica Brasileira Contemporânea”,
Organização e apresentação de Manuel da Costa Pinto.



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