domingo, 30 de outubro de 2016

Um texto sobre Luis Fernando Veríssimo


O dia em que descobri que Luis Fernando Veríssimo é um mentiroso


Na Copa da Espanha, em 1982, um grupo formidável jantava quase diariamente em Sevilha, depois em Barcelona, depois em Madri. Luis Fernando Veríssimo, Ruy Carlos Ostermann, Sérgio Cabral, o pai, João Ubaldo Ribeiro, Nelson Motta e eu. Com defecções e acréscimos, as noitadas se repetiram em Guadalajara, no México, quatro anos depois.

João Saldanha, por exemplo, às vezes dava o ar de sua graça, assim como o impagável Paulo Sant’Ana, de Zero Hora. Eram jantares intermináveis e inesquecíveis. Eu ficava rouco de tanto ouvir, de tanto rir, de tanto aprender. Cada um era melhor contador de casos do que o outro, e invariavelmente, ao fim dos jantares, Veríssimo saía de seu mutismo e nos deliciava com suas histórias.

Uma bela noite em Guadalajara, Veríssimo e eu nos encontramos no saguão do hotel, e, depois de muito esperarmos, nos demos conta de que havíamos sido abandonados. Ninguém apareceu. Preocupado com o mutismo do companheiro e com a longa matéria que teria de escrever ao voltar, propus que fôssemos a um restaurante perto do hotel, jogo rápido, a pé.

Veríssimo também tinha de escrever sua coluna dominical e topou na hora. Lá fomos nós, calados, como convinha. Fui pensando em como começar uma conversa e, depois de pedir o jantar, perguntei, pedindo que fosse bem honesto, se ele acreditava no chavão que nos ensinaram desde criança, de que o trabalho é quase sempre 90% de transpiração e apenas 10% de inspiração (coisa que, no caso dele, não me parecia verdade mesmo!).

Monossilabicamente, Veríssimo respondeu que sim, que tinha de se esforçar muito para escrever, que sofria no ato de redigir. Jantamos praticamente em silêncio. Nos despedimos nas portas de nossos quartos, parede a parede. Pus papel na máquina de escrever e fiquei contemplando aquele branco angustiante – embora as laudas nunca tenham sido propriamente brancas, mas, sim, amareladas.

Eis que, incontinenti, ouço um disparar de teclado no quarto ao lado. Era mesmo como se fosse uma metralhadora. Foi coisa de dez minutos ininterruptos, ao cabo dos quais pude ouvir o barulho de uma torneira aberta e da escova de dentes batida na pia. Dei um tempinho, bati na porta do quarto de Veríssimo, e ele a abriu, já de pijama.

Não tive dúvidas. Chamei-o de mentiroso e prometi que ele teria muita dificuldade para dormir, porque eu batucaria na máquina até umas quatro da matina. Ele tentou se desculpar, disse que não tinha mentido nada, que na verdade ficava tão calado porque vivia escrevendo mentalmente, razão pela qual, quando se sentava diante da máquina, o texto fluía com aparente facilidade.

Eu não acredito. E até hoje o tenho na conta de mentiroso. Genial mentiroso.

Escrevi até as cinco.

(Extraído do livro “Meninos, eu vi”, de Juca Kfouri, editoras DBA/Lance)



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