segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Manuelzão



Nascido em 1904, em Dom Silvério, cidade na Zona da Mata mineira, Manuel Nardi passou quase todos os seus 93 anos no sertão mineiro. Faleceu em 1998.

Manuelzão, um dos companheiros de Guimarães Rosa nas andanças pelo sertão, foi imortalizado pela obra do escritor.


Manuelzão e Guimarães Rosa

Mané, Manezinho, Nezinho, Manelão. Mesmo quem nunca leu a obra de Guimarães Rosa provavelmente já ouviu falar num vaqueiro que tinha diversos apelidos durante a vida, mas ficou conhecido mesmo pelo nome de seu personagem no livro Corpo de Baile: Manuelzão. Depois de virar um ícone literário, Manuel Nardi (seu nome de batismo) nunca mais foi o mesmo. Passou a se confundir com o homem descrito no conto de Rosa e adotou o Manuelzão que o imortalizou.

O encontro entre Manuel Nardi e o escritor João Guimarães Rosa aconteceu quando o vaqueiro tinha já 45 anos, na histórica comitiva que cavalgou 240 quilômetros em 10 dias, da Fazenda Sirga, na cidade de Três Marias, à Fazenda São Francisco, em Araçaí, Minas Gerais. Dessa aventura nasceu a obra-prima de Rosa: Grande Sertão: Veredas. Foram, ao todo, 19 dias de convivência com o escritor, incluindo a preparação para a viagem. No grupo havia, além de Rosa, com seus caderninhos de anotações pendurados no pescoço, sete vaqueiros – hoje todos mortos – e 198 cabeças de gado.

Manuelzão foi o único dos colegas que, no decorrer e depois da viagem, deixou-se gravar e contou boa parte de seus causos ao escritor. Em parte, fez isso porque sempre sonhou em ver sua figura eternizada.

Manuelzão dizia e contava um caso engatando no outro. E era aquela felicidade de fruição de boa água límpida, jorrando dadivosa da fonte telúrica das minas. O velho não se cansava, abundante em informes e vivências. Não se repetia e parecia inexaurível. Fora ele quem comandara os tropeiros que, partindo no dia l9 de maio de l952 da Fazenda Sirga, nas cercanias de Três Marias, junto ao velho Chico, conduziram 360 bois por quarenta léguas – duzentos e quarenta quilômetros – abaixo, rumo a Araçaí, distrito de Sete Lagoas, num trajeto de onze dias.

Seus companheiros eram Zito, que faleceu há pouco, Bindóia, Gregório, Santana, Joaquim, Sebastião, Aquiles, Tião Leite e um rapazinho do qual não se fala. Com eles ia um certo “dotô” da cidade do Rio de Janeiro, almofadinha, bisbilhoteiro e anotador de tudo quanto era coisa e variedade. Logo este se despiu do tratamento de doutor, e disse ser Rosa, nascido ali, no Cordisburgo. Virou o João Rosa, garbosamente montado na besta Balalaika, para Manuelzão e seus companheiros de travessia.

Manuel Nardi era uma “espécie de gerente de uma microempresa de transporte”, tropeiro, num país ainda rural, mas já em vias de aspirar a uma esperançosa ascensão urbana. Manuelzão e seus associados se interpuseram nessa transição: do sertão rústico, local, rural, para o sertão abrangente da literatura que descreve e batiza o mundo moderno, citadino, universal.

Pelas artes da obra de Guimarães Rosa, o vaqueiro mineiro assumiu a posição de chefe-de-fila, ele, com seu histrionismo caipira bem balanceado, sério composto, como legítimo homem de Rosa. Sua inteligência prática de sertanejo curtido, observador e experimentador das circunstâncias, refletia e raciocinava sobre tudo quanto a vida de vaqueiro lhe propiciara.

Manuelzão tornou-se o companheiro exemplar, redivivo, do escritor João Guimarães Rosa. Tantos, como eu - todos aqueles que, hoje, percebem a precisão e a valência da obra de Joãozito - procuravam avidamente encontrar um brilho de luz do João – Graça de Deus – na figura animada do Manuel – Deus conosco. Essa luz ele tinha. Ele sabia fazer farol e ser o brilho vidrilho de luz cintilante que alumiava o tosco feio, indiferenciado, maculado do borrado sujo de nossos cotidianos sem graça e sem finalidade.

Ouvi-lo, estar em presença de Manuelzão, era um deleite, um extenso delém, tal como aquele que Riobaldo sentia, atraído e encantado, quando estava perto de Diadorim... Foi assim que auferi os influxos de sua pessoa e de sua presença. Silenciosa e discretamente, armei-me cavaleiro fiel da Ordem de Manuelzão. Minha sincera e expressiva homenagem foi colocar-me como escudeiro e vassalo, sujeito às emanações da pura sabedoria proveniente dos fundos da minha terra mineira que sua hierática figura evoca. Depois, foi só procurar na bíblia escrita por João Guimarães Rosa uma frase a propósito da intenção da foto. Sempre há.

Manuel Nardi era o repositório das façanhas e das travessias dos homens pelo sertão, memória viva de um tempo e de lugares que se vêm transformando.

- O sertão? O senhor vá lá, talvez ainda encontre alguma coisa...


Manuelzão no ano que se fez amigo de Guimarães Rosa,
em foto de Maureen Bisilliat.

Manuel Nardi, falecido em 1998, aos 93 anos. Ele é um dos mais conhecidos personagens dos livros do escritor João Guimarães Rosa, o mais famoso contador das histórias dos sertões mineiros - por onde o Rio das Velhas passa - e um dos primeiros a reconhecer a importância dos rios para a sobrevivência do homem.

Daqueles dez dias pelo sertão de Minas, resultariam dois de seus livros mais importantes: Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile, livro de contos e novelas que depois foi dividido em três volumes - Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do Sertão.

* Na caixa de DVDs com toda minissérie “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, gravada em 1985, na primeira cena, do primeiro capítulo, quem faz a primeira aparição, caminhando num campo, com a voz dublada, é o próprio Manuelzão.



Guimarães Rosa por Loredano



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