J. Simões Lopes Neto
Gravura de Edgar
Vasques
Eu tropeava, nesse tempo. Duma feita que viajava de escoteiro, com a guaiaca
empanzinada de onças de ouro, vim varar aqui neste mesmo passo, por me ficar
mais perto da estância da Coronilha, onde devia pousar.
Parece que foi ontem!... Era fevereiro; eu vinha abombado da troteada.
‒ Olhe, ali, na restinga, à sombra daquela mesma reboleira de mato que está nos
vendo, na beira do passo, desencilhei; e estendido nos pelegos, a cabeça no
lombilho, com o chapéu sobre os olhos, fiz uma sesteada morruda.
Despertando, ouvindo o ruído manso da água tão limpa e tão fresca rolando sobre
o pedregulho, tive ganas de me banhar; até para quebrar a lombeira... e fui-me
à água que nem capincho!
Debaixo da barranca havia um fundão onde mergulhei umas quantas vezes; e sempre
puxei umas braçadas, poucas, porque não tinha cancha para um bom nado.
E solito e no silêncio, tornei a
vestir-me, encilhei o zaino e montei. Daquela vereda andei como três léguas,
chegando à estância cedo ainda, obra assim de braça e meia de sol.
‒ Ah!... esqueci de dizer-lhe que andava comigo um cachorro brasino, um cusco
mui esperto e bom vigia. Era das crianças, mas às vezes dava-lhe para
acompanhar-me, e depois de sair a porteira, nem por nada fazia cara-volta, a
não ser comigo. E nas viagens dormia sempre ao meu lado, sobre a ponta da
carona, na cabeceira dos arreios.
Por sinal que uma noite...
Mas isso é outra cousa: vamos ao caso.
Durante a troteada bem reparei que volta e meia o cusco parava-se na estrada e
latia e corria pra trás, e olhava-me, olhava-me e latia de novo e troteava um
pouco sobre o rastro; ‒ parecia que o bichinho estava me chamando!... Mas como
eu ia, ele tornava a alcançar-me, para daí a pouco recomeçar.
‒ Pois, amigo! Não lhe conto
nada! Quando botei o pé em terra na ramada da estância, ao tempo que dava as ‒
boas tardes! ‒ ao dono da casa, agüentei um tirão seco no coração... não senti
na cintura o peso da guaiaca!
Tinha perdido trezentas onças de ouro que levava, para pagamento de gados que
ia levantar.
E logo passou-me pelos olhos um
clarão de cegar, depois uns coriscos tirante a roxo... depois tudo me ficou
cinzento, para escuro...
Eu era mui pobre ‒ e ainda hoje,
é como vancê sabe... ‒; estava começando a vida, e o dinheiro era do meu
patrão, um charqueador, sujeito de contas mui limpas e brabo como uma manga de
pedras...
Assim, de meio assombrado me fui repondo quando ouvi que indagavam:
‒ Então patrício? Está doente?
‒ Obrigado! Não senhor, respondi, não é doença; é que sucedeu-me uma desgraça:
perdi uma dinheirama do meu patrão...
‒ A la fresca!...
‒ É verdade... antes morresse, que isto! Que vai ele pensar agora de mim!...
‒ É uma dos diabos, é... mas; não se acoquine, homem!
Nisto o cusco brasino deu uns pulos ao focinho do cavalo, como querendo
lambê-lo, e logo correu para a estrada, aos latidos. E olhava-me, e vinha e ia,
e tornava a latir...
Ah!... E num repente lembrei-me bem de tudo. Parecia que estava vendo o lugar
da sesteada, o banho, a arrumação das roupas nuns galhos de sarandi, e, em cima
de uma pedra, a guaiaca e por cima dela o cinto das armas, e até uma ponta de
cigarro de que tirei uma última tragada, antes de entrar na água, e que deixei
espetada num espinho, ainda fumegando, soltando uma fitinha de fumaça azul, que
subia, fininha e direita, no ar sem vento...; tudo, vi tudo.
Estava lá, na beirada do passo, a guaiaca. E o remédio era um só: tocar a meia
rédea, antes que outros andantes passassem.
Num vu estava a cavalo; e mal isto, o cachorrito pegou a retouçar, numa
alegria, ganindo ‒ Deus me perdoe! ‒ que até parecia fala!
E dei de rédea, dobrando o cotovelo do cercado.
Ali logo frenteei com uma comitiva de tropeiros, com grande cavalhada por
diante, e que por certo vinha tomar pouso na estância. Na cruzada nos tocamos
todos na aba do sombreiro; uns quantos vinham de balandrau enfiado. Sempre me
deu uma coraçonada para fazer umas perguntas... mas engoli a língua.
Amaguei o corpo e, penicando de esporas, toquei a galope largo.
O cachorrinho ia ganiçando, ao lado, na sombra do cavalo, já mui comprida.
A estrada estendia-se deserta; à esquerda, os campos desdobravam-se a perder de
vista, serenos, verdes, clareados pela luz macia do sol morrente, manchados de
pontas de gado que iam se arrolhando nos paradouros da noite; à direita, o sol;
muito baixo, vermelho-dourado, entrando em massa de nuvens de beiradas
luminosas.
Nos atoleiros, secos, nem um
quero-quero: uma que outra perdiz, sorrateira, piava de manso por entre os
pastos maduros; e longe, entre o resto da luz que fugia de um lado e a noite
que vinha, peneirada, do outro, alvejava a brancura de um joão-grande, voando,
sereno, quase sem mover as asas, como uma despedida triste, em que a gente
também não sacode os braços...
Foi caindo uma aragem fresca; e um silêncio grande, em tudo.
O zaino era um pingaço de lei; e
o cachorrinho, agora sossegado, meio de banda, de língua de fora e de rabo em
pé, troteava miúdo e ligeiro dentro da polvadeira rasteira que as patas do
flete levantavam.
E entrou o sol; ficou nas alturas
um clarão afogueado, como de incêndio num pajonal; depois, o lusco-fusco;
depois, cerrou a noite escura; depois, no céu, só estrelas... só estrelas...
O zaino atirava o freio e gemia
no compasso do galope, comendo caminho. Bem por cima da minha cabeça as
Três-Marias, tão bonitas, tão vivas, tão alinhadas, pareciam me acompanhar...
lembrei-me dos meus filhinhos, que as estavam vendo, talvez; lembrei-me da
minha mãe, do meu pai, que também as viram, quando eram crianças e que já as
conheceram pelo seu nome de Marias, as Três-Marias. Amigo! Vancê é moço, passa
a sua vida rindo...; Deus o conserve!... sem saber nunca como é pesada a
tristeza dos campos quando o coração pena!...
‒ Há que tempos eu não
chorava!... Pois me vieram lágrimas..., devagarinho, como gateando, subiram...
tremiam sobre as pestanas, luziam um tempinho... e ainda quentes, no arranco do
galope lá caíam elas na polvadeira da estrada, como um pingo d'água perdido,
que nem mosca nem formiga daria com ele!...
Por entre as minhas lágrimas, como um sol cortando um chuvisqueiro, passou-me
na lembrança a toada dum verso lá dos meus pagos:
Quem canta refresca a alma,
Cantar adoça o sofrer;
Quem canta zomba da morte:
Cantar ajuda a viver!...
Mas que
cantar podia eu!...
O zaino respirou forte e sentou e
sentou, trocando a orelha, farejando no escuro: o bagual tinha reconhecido o
lugar, estava no passo.
Senti o cachorrinho respirando, como assoleado. Apeei-me.
Não bulia uma folha; o silêncio, nas sombras do arvoredo, metia respeito... que
medo não, que não entra em peito de gaúcho!
Embaixo, o rumor da água pipocando sobre o pedregulho; vagalumes retouçando no
escuro. Desci, dei com o lugar onde havia estado; tenteei os galhos do sarandi;
achei a pedra onde tinha posto a guaiaca e as armas; corri as mãos por todos os
lados, mais pra lá, mais pra cá...; nada! nada!...
Então, senti frio dentro da alma... o meu patrão ia dizer que eu o havia
roubado!... roubado!... Pois então eu ia lá perder as onças!... Qual! Ladrão,
ladrão, é que era!...
E logo uma tenção ruim entrou-me
nos miolos: eu devia matar-me, para não sofrer a vergonha daquela suposição. É;
era o que eu devia fazer: matar-me... e já, aqui mesmo!
Tirei a pistola do cinto; amartilhei o gatilho... benzi-me, e encostei no
ouvido o cano, grosso e frio, carregado de bala...
‒ Ah! patrício! Deus existe!...
No refilão daquele tormento,
olhei para diante e vi... as Três-Marias luzindo na água... o cusco
encarapitado na pedra, ao meu lado, estava me lambendo a mão... e logo, logo, o
zaino relinchou lá em cima, na barranca do riacho, ao mesmíssimo tempo que a
cantoria alegre de um grilo retinia ali perto, num oco de pau!...
‒ Patrício! não me avexo duma
heresia; mas era Deus que estava no luzimento daquelas estrelas, era Ele que
mandava aqueles bichos brutos arredarem de mim a má tenção...
O cachorrinho tão fiel lembrou-me
a amizade da minha gente; o meu cavalo lembrou-me a liberdade, o trabalho, e
aquele grilo cantador trouxe a esperança...
Eh-pucha! patrício, eu sou mui
rude... a gente vê caras, não vê corações...; pois o meu, dentro do peito,
naquela hora, estava como um espinilho ao sol, num descampado, no pino do
meio-dia: era luz de Deus por todos os lados!...
E já todo no meu sossego de homem, meti a pistola no cinto. Fechei um baio,
bati o isqueiro e comecei a pitar.
E fui pensando. Tinha, por minha culpa, exclusivamente por minha culpa, tinha
perdido as trezentas onças, uma fortuna para mim. Não sabia como explicar o
sucedido, comigo, acostumado a bem cuidar das cousas. Agora... era vender o
campito, a ponta de gado manso ‒ tirando umas leiteiras para as crianças e a
junta dos jaguanés lavradores ‒ vender a tropilha dos colorados... e pronto!
Isso havia de chegar, folgado; e caso mermasse a conta... enfim, havia de se
ver o jeito a dar... Porém matar-se um homem, assim no mais... e chefe de
família... isso, não!
E despacito vim subindo a barranca; assim que me sentiu, o zaino escarceou,
mastigando o freio.
Desmaneei-o, apresilhei o cabresto; o pingo agarrou a volta e eu montei,
aliviado.
O cusco escaramuçou, contente; a trote e galope voltei para a estância.
Ao dobrar a esquina do cercado enxerguei luz na casa; a cachorrada saiu logo,
acuando. O zaino relinchou alegremente, sentindo os companheiros; do potreiro
outros relinchos vieram.
Apeei-me no galpão, arrumei as garras e soltei o pingo, que se rebolcou, com
ganas.
Então fui para dentro: na porta dei o ‒ Louvado seja Jesu-Cristo; boa-noite! ‒
e entrei, e comigo, rente, o cusco. Na sala do estancieiro havia uns quantos
paisanos; era a comitiva que chegava quando eu saía; corria o amargo.
Em cima da mesa a chaleira, e ao lado dela, enroscada, como uma jararaca na
ressolana, estava a minha guaiaca, barriguda, por certo com as trezentas onças
dentro.
‒ Louvado seja Jesu-Cristo, patrício! Boa-noite! Entonces, que tal le foi o
susto?...
E houve uma risada grande de gente boa.
Eu também fiquei-me rindo, olhando para a guaiaca e para o guaipeva,
arrolhadito aos meus pés...
*****
Do livro "Contos Gauchescos", de João Simões Lopes Neto