O namoro do Chico Buarque com a cantora ruiva Thais Gulin (hoje ex-namorada)
rendeu para nós este primor de blues Essa pequena, cuja letra vai aí abaixo.
Mas rendeu também a uma interessante crônica Um tempo sem nome da escritora Rosiska Darcy de Oliveira sobre “o
novo conceito de envelhecer”. Também segue abaixo.
Essa Pequena
Chico Buarque*
Meu tempo é
curto, o tempo dela sobra.
Meu cabelo é
cinza, o dela é cor de abóbora.
Temo que não
dure muito a nossa novela, mas...
Eu sou tão
feliz com ela.
Meu dia voa,
e ela não acorda.
Vou até a
esquina, ela quer ir pra Flórida.
Acho que nem
sei direito o que é que ela fala, mas...
Não canso de
contemplá-la...
Feito
avarento, conto os meus minutos,
Cada segundo
que se esvai,
Cuidando
dela, que anda noutro mundo.
Ela que esbanja
suas horas ao vento, aiii...!
Às vezes,
ela pinta a boca e sai.
Fique à
vontade, eu digo, take your time
Sinto que
ainda vou penar com essa pequena, mas...
O blues já
valeu a pena.
*****
Um tempo sem nome
Rosiska Darcy de
Oliveira, O Globo, 21/01/12
Com seu cabelo cinza, rugas novas
e os mesmos olhos verdes, cantando madrigais para a moça do cabelo cor de
abóbora, Chico Buarque de Holanda vai bater de frente com as patrulhas do senso
comum. Elas torcem o nariz para mais essa audácia do trovador. O casal cinza e
cor de abóbora segue seu caminho e tomara que ele continue cantando “eu sou tão
feliz com ela” sem encontrar resposta ao “que será que dá dentro da gente que
não devia”.
Afinal, é o olhar estrangeiro que nos
faz estrangeiros a nós mesmos e cria os interditos que balizam o que supostamente
é ou deixa de ser adequado a uma faixa etária. O olhar alheio é mais cruel que
a decadência das formas. É ele que mina a autoimagem, que nos constitui como velhos, desconhece e, de certa
forma, proíbe a verdade de um corpo sujeito à impiedade dos anos sem que
envelheça o alumbramento diante da vida.
Proust, que de gente entendia como
ninguém, descreve o envelhecer como o mais abstrato dos sentimentos humanos. O
príncipe Fabrizio Salinas, o Leopardo criado por Tommasi di Lampedusa, não
ouvia o barulho dos grãos de areia que escorrem na ampulheta. Não fora o
entorno e seus espelhos, netos que nascem, amigos que morrem, não fosse o tempo
“um senhor tão bonito quanto a cara do
meu filho”, segundo Caetano, quem, por si mesmo, se perceberia envelhecer?
Morreríamos nos acreditando jovens como sempre fomos.
A vida sobrepõe uma série de experiências
que não se anulam, ao contrário, se mesclam e compõem uma identidade. O idoso
não anula dentro de si a criança e o adolescente, todos reais e atuais,
fantasmas saudosos de um corpo que os acolhia, hoje inquilinos de uma pele em
que não se reconhecem. E, se é verdade que o envelhecer é um fato e uma foto, é
também verdade que quem não se reconhece na foto, se reconhece na memória e no
frescor das emoções que persistem. É assim que, vulcânica, a adolescência pode
brotar em um homem ou uma mulher de meia-idade, fazendo projetos que mal cabem
em uma vida inteira.
Essa doce liberdade de se reinventar
a cada dia poderia prescindir do esforço patético de camuflar com cirurgias e
botoxes -
obras na casa demolida - a inexorável escultura do tempo. O medo pânico de envelhecer,
que fez da cirurgia estética um próspero campo da medicina e de uma vendedora de cosméticos a
mulher mais rica do mundo, se explica justamente pela depreciação cultural e
social que o avançar na idade provoca.
Ninguém quer parecer idoso, já que
ser idoso está associado a uma sequência de perdas que começam com a da beleza
e a da saúde. Verdadeira até então, essa
depreciação vai sendo desmentida por uma saudável evolução das mentalidades: a
velhice não é mais o que era antes. Nem
é mais quando era antes. Os dois ritos de passagem que a anunciavam, o fim do trabalho e da
libido, estão, ambos, perdendo autoridade.
Quem se aposenta continua a viver em
um mundo irreconhecível que propõe novos interesses e atividades. A curiosidade
se aguça na medida em que se é desafiado
por bem mais que o tradicional choque de gerações com seus conflitos e desentendimentos. Uma
verdadeira mudança de era nos leva de
roldão, oferecendo-nos ao mesmo tempo o privilégio e o susto de dela
participar.
A libido, seja por uma maior
liberalização dos costumes, seja por
progressos da medicina, reclama seus direitos na terceira idade com uma naturalidade que em outros tempos já foi
chamada de despudor. Esmaece a fronteira
entre as fases da vida. É o conceito de velhice
que envelhece. Envelhecer como sinônimo de decadência deixou de ser uma profecia que se autorrealiza. Sem, no
entanto, impedir a lucidez sobre o
desfecho.
“Meu
tempo é curto e o tempo dela sobra”, lamenta-se o trovador, que não ignora
a traição que nosso corpo nos reserva. Nosso melhor amigo, que conhecemos
melhor que nossa própria alma, companheiro dos maiores prazeres, um dia nos
trairá, adverte o imperador Adriano em suas memórias escritas por Marguerite
Yourcenar.
Todos os corpos são traidores. Essa
traição, incontornável, que não é segredo para ninguém, não justifica
transformar nossos dias em sala de
espera, espectadores conformados e passivos da degradação das células e dos projetos de futuro, aguardando
o dia da traição. Chico, à beira dos
setenta anos, criando com brilho, ora literatura, ora música, cantando um novo
amor, é a quintessência desse fenômeno,
um tempo da vida que não se parece em nada com o que um dia se chamou de velhice. Esse tempo ainda não encontrou
seu nome. Por enquanto podemos chamá-lo
apenas de vida.
Rosiska Darcy de
Oliveira é escritora
e foi eleita para a Academia Brasileira de Letras
e foi eleita para a Academia Brasileira de Letras
* Caricatura do Chico por João Bosco
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