José Cândido de
Carvalho
Tocantins Pereira viu passar vinte
anos pela sua mesa de amanuense da Secretaria do Fomento. Vinte anos de
processos sobre zebu e capim-jaraguá. Lá fora, longe da caneta de Tocantins
Pereira, passaram resmas de moças, jardins de flores e cachos de luar.* Aos
domingos, na Pensão Saraiva, no Engenho de Dentro, Tocantins varava os
processos do Fomento com fúria de saca-rolhas. Alma de portaria, sempre movido
a regulamento, não teve olhos para uma certa Mercodenes Silveira que esperava
por ele toda tarde na sala de visitas da Pensão Saraiva. Não adiantou Mercodenes
estreitar a cintura e mostrar as boas e variadas fatias de que era servida. À
vezes insinuava:
‒ Seu Tocantins, está levando uma
Theda Bara no cinema Guarani que é uma beleza, seu Tocantins.
Cansada de trabalhar em seco, a moça
da Pensão Saraiva transferiu sua paixão para outro bairro. E sobre essa
transferência os anos rolaram. Até que uma tarde, no Mercado das Flores,
Tocantins ouviu aquela voz feita de asas de borboleta:
‒ Tocantins,
Tocantins!
Era dona Mercodenes que parecia ter
saído de uma vitrina de modas. Tinha casado com um senador, homem de recursos e
de poder. Que ele, Tocantins, pedisse o que bem quisesse. Morava sozinha em Santa Tereza , uma vez
que o senador andava longe, tirando o Brasil da beira do abismo a poder de
discurso. Que ele aparecesse, dispensava a criadagem. E maliciosa, de dedo
enluvado quase no beiço do informador de papéis da Secretaria de Fomentos:
‒ Peça o
quiser, Tocantins. Não tenha acanhamento. Ninguém vai saber de nada.
Então, dando pontapés em vinte anos
de boi zebu e capim-jaraguá, Tocantins desembuchou:
‒ Se não é pedir muito, dona Mercodenes,
eu queria ser transferido para as Rendas Aduaneiras. O senador seu marido pode
fazer isso. É do regulamento. O senador pode fazer, que eu sei que pode, dona
Mercodenes.
Mas já dona
Mercodenes estava longe. Longe para nunca mais.
*****
*O trecho opõe
fortermente a rotina do amanuense ao dinamismo da vida.
Texto do livro “Um Ninho de
Mafagafes Cheio de Mafagafinhos”, publicado em 1972 pela editora José Olympio.
Trata do segundo volume dos “contados, astuciados e acontecidos do povinho do
Brasil”.
José Cândido de Carvalho:
1914 – 1989
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