Eu tenho um bugre dentro de mim,
tenho...
Sinto-o nesta paixão antiga por
caçadas,
no prazer infantil de andar no
mato,
na profunda afeição pelas coisas
agrestes.
Nasci nas matas do rio Doce.
“Minha bisavó foi pegada a laço”...
Talvez seja por isso que não
gosto de arranha-céus,
estes jequitibás mortos, sem
folhagens
no carrascal das cidades.
Não gosto de apartamentos onde o
ar
só entra pelos conta-gotas das
janelas;
não gosto de asfalto, deixa o
solo
sem poros, como cicatrizes de
queimaduras;
nem de estradas eu gosto,
lembram cadáveres congelados...
Eu tenho um bugre dentro de mim,
diluído no meu sangue, tenho...
Sinto que ele me arrasta
para a fragrância balsâmica das
matas,
para a música das cachoeiras,
para as noites leitosas de luar,
para a majestade serena dos
grandes rios,
para o marulhar constante dos
regatos,
para o verde dos mares,
para o azul dos céus,
para o silêncio repousante dos
lagos adormecidos...
Ainda é ele, o bugre, que me
impele
para a árvore de junco do teu
corpo,
para os galhos roliços dos teus
braços,
para a floresta escura dos teus
cabelos,
para as águas dormentes dos teus
olhos,
para o fruto vermelho da tua
boca,
para os passarinhos que cantam na
tua voz...
Eu tenho um bugre dentro de mim,
tenho!
Por que, Senhor! Não fiquei só no
bugre?...
No bugre livre de selo,
livre de folhinha,
livre de relógio,
livre de roupa...
No bugre livre! Livre! Livre!
(Demóstenes Cristino)
Demóstenes Cristino nasceu no dia 14
de julho de 1894 na Fazenda Caju, Distrito de Entre Folhas, Caratinga (MG).
Cursou Odontologia em Juiz de Fora e exerceu a profissão em Poços de Caldas,
até mudar-se em 1926 com a família para Ipameri (GO), à época chamada de Entre
Rios. Lá, publicou Musa Bravia (1949) e Trovas(1960)e atuou também como
jornalista colaborador dos dois jornais da cidade; um deles dirigido pelo
também poeta Edésio Daher, avô dos filhos do poeta Reynaldo Jardim. A poesia,
portanto, sempre rodeou Demóstenes, ele próprio avô da poetisa Ieda Schmaltz e
pai de outro escritor, o médico Leonardo Cristino.
O poeta permaneceu viúvo 34 anos dos
36 vividos na pacata cidade goiana. Louvado pelo humor picantemente irônico e
mordaz, definia-se como excêntrico e vaidoso, “todavia”, lembra César Baiocchi,
“era extremamente cavalheiro e culto. Dizemos nós hoje” – continua Baiocchi –
“Demóstenes Cristino, você é como aroeira de Entre Folhas mineira e de Entre
Rios goiana, vive altaneira e altiva entre as árvores e depois que morre vira
esteio e nunca acaba”. Em 18 de abril de 1962, o poeta faleceu em Ipameri.
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