“É impossível, Majestade, ainda
há juízes em Berlim.”
Frederico II, rei da Prússia, após
haver terminado seu palácio de Sans Souri, notou que um moinho das vizinhanças
não conduzia com a magnificência do palácio, propôs ao proprietário comprá-lo,
mas o oleiro se negou a vendê-lo, estribando-se em razões sentimentais. O rei
ameaçou-o, então de lho tomar à força, ouvindo, porém a ousada resposta, a qual
nos dá bem ideia da alta conta em que era tida a justiça berlinense.
Crônica
Ainda há juízes no Brasil
O lugar de um cidadão, seja ele
moleiro, seja senador, é definido em lei – não diante das câmeras.
Em 1745, o todo-poderoso Frederico
II, rei da Prússia, manda construir, em Potsdam, nos arredores de Berlim, o
famoso castelo de Sans-Souci, que ficaria pronto dois anos depois. Déspota
esclarecido, amigo de escritores e artistas, exerce atração sobre sábios de
várias nacionalidades, especialmente franceses. Voltaire é um dos que frequentam
sua residência.
Um de seus áulicos, porém, mais arbitrário que o governante a quem
serve, ainda que sem as mesmas luzes, quer espantar para longe da vizinhança um
modesto moleiro para que o pequeno empresário e seu moinho não ofendam a bela
paisagem que cerca a construção. O intendente tem a seu favor a lei informal,
jamais promulgada, mas vigente em tais circunstâncias, que o político
brasileiro Pedro Aleixo tanto temeu quando ousou imaginar o que faria com todos
os poderes do Ato Institucional n° 5, não o ditador ou seus ministros, mas o guarda da
esquina.
Parodiando Camões, nessas horas uma
nuvem que os ares escurece/sobre nossas cabeças aparece. E tão temerosa vinha e
carregada/que pôs nos corações um grande medo. Dando a entender que fala em
nome do rei, a autoridade vai fazendo propostas em cima de propostas para que o
moleiro se mude dali, ensejando assim a destruição do moinho. Nenhuma delas
surte o efeito desejado.
O intendente passa, então, às
ameaças, que, entretanto, não assustam o proprietário cioso de seus direitos. A
querela chega aos ouvidos de Frederico II e o monarca resolve conversar com
aquele homem que lhe parece tão corajoso. Pergunta-lhe qual o motivo de ele não
ter medo de ninguém, nem do rei. A resposta do moleiro foi resumida em frase
que se tornou célebre, depois frequentemente invocada em situações em que o
Judiciário é chamado a limitar o poder dos governantes: “Ainda há juízes em
Berlim”. Ele lutaria contra o rei na Justiça.
O moleiro continuou onde estava. O
episódio passou à posteridade na versão do escritor francês François Andrieux,
que escreveu em versos o conto “O Moleiro de Sans-Souci”, ainda que tenha
concluído com melancolia: Respeita-se um moinho, mas rouba-se uma província.
Pois, no Brasil, nos tempos que
vivemos, algumas frases também haverão de se tornar célebres, resumindo
momentos decisivos de nossa crônica política. “Confesso que menti”, do senador
José Roberto Arruda, pode vir a ser uma delas. O senador poderia, quem sabe,
escrever um livro cujo título seria essa sua frase, na linha de Confesso Que Vivi, de Pablo Neruda.
Regina Borges, a ex-diretora do Prodasen, escreveria outro: “Confesso que
obedeci”. Falta, porém, o livro de ninguém menos que o ex-presidente do Senado
Antonio Carlos Magalhães, de quem seus inquisidores esperam que pronuncie a
frase “Confesso que mandei”. Por enquanto, ele, exagerado em tudo, já
pronunciou outra frase famosa: “Eu tenho a lista”. Depois negou e mudou-a para
“Eu vi, mas rasguei a lista”.
No Congresso já foram cometidas
injustiças que demoraram ou não puderam mais ser reparadas. No Judiciário é
mais difícil ocorrer isso. Pode ser que culpados não sejam punidos, mas é quase
impossível punir um inocente. Seria melhor que voltássemos ao óbvio: o lugar de
julgar um cidadão, seja ele moleiro, seja senador, é definido em lei. E não é diante das
câmeras. Pois ainda há juízes no Brasil.
Deonísio da Silva é
escritor e professor universitário
Nenhum comentário:
Postar um comentário