Machado de Assis - 35 anos
Por mais de uma vez, em contos,
crônicas e romances, aludiu Machado de Assis às loterias, em cujos bilhetes via
o emblema da luta de Jacó com o anjo. Isso nos faz supor que o mestre,
escondidamente, como era de seu feitio, teimou em comprar o seu gasparinho*,
certo de que, conforme escreveu nas Relíquias
da Casa Velha – “a loteria é mulher, pode acabar cedendo um dia.”
Se o Presidente da Academia se
aventurou à caçada da sorte-grande, não é de estranhar que Guimarães Passos,
poeta menor e boêmio, se dedicasse a uma caçada mais modesta, teimando em
jogar-no-bicho.
Guimarães Passos
Em verdade, para o poeta dos Versos de um simples, o jogo-do-bicho
constituiu, se não um recurso para viver, pelo menos um expediente para sonhar.
E sonhar de um modo parcimonioso e diário. Em lugar da sorte-grande, o prêmio
pequeno, que daria para um mês ou dois de vida generosa.
Certa vez, subiu ele o morro, para
buscar uma camisa em casa da lavadeira. Esta, ao vê-lo, impôs-lhe silêncio, com
o dedo na boca.
– Fale baixo – sussurrou.
E apontando para o interior da casa:
– Seu José está sonhando com o bicho que vai dar.
O semblante do poeta, que era de
irritação, desanuviou-se por completo. E ele, agora risonho, acomodou-se numa
cadeira, para esperar sentado a camisa e o palpite.
De outra vez, entrou Guimarães Passos
na Livraria Garnier e, chamando de parte João Ribeiro, tomou cinco tostões ao
filólogo para jogar na cabra:
– É matemático – afirmou – hoje, com
toda a certeza, dá cabra.
E ao cair da tarde trazia o dinheiro
do prêmio:
– Eu não lhe dizia que dava cabra?
Tempos depois, por ocasião do enterro
de José do Patrocínio, seu velho amigo e companheiro de roda boêmia, o poeta
fez questão de ser o último a deixar o campo-santo.
Olegário Mariano, que o tinha
acompanhado, veio à frente, com outros amigos, e ficou a esperá-lo no portão
principal do cemitério. Dez minutos depois, vendo que o poeta não aparecia,
saiu a procurá-lo. E o encontrou ajoelhado junto à sepultura de José do
Patrocínio, falando ao amigo morto:
– Zeca, eu trabalhei anos e anos no
teu jornal e só de longe em longe te lembraste de me pagar. Agora, meu filho,
tem paciência. Trata de me dar uma ajuda. Eu tomei nota do número de tua
sepultura e vou jogar nesse milhar. Por favor, Zé do Pato, não abandones este
amigo velho. Tu sabes que eu ando apertado. Dá um jeito de eu ganhar.
No dia seguinte, jogou alto.
E parece que acertou...
(Do livro “Pequeno
Anedotário da Academia Brasileira”,
de Josué Montello)
*Gasparinho ou Gasparino
Irreconhecíveis as oposições quando se transformam em governos.
Rasgam-se os discursos, revogam-se os
compromissos, altera-se a lógica, desaparecem as ideologias.
O povo, ingênuo e bom, manso e
pacífico, insiste em desconhecer o império das conveniências.
Há mais de um século, o “gasparino”
ou “gasparinho” aponta para essa pertinaz ocorrência.
Mas afinal,
o que é gasparinho ou gasparino?
Escondido no recôndito dos
dicionários, vê-se que gasparinho ou gasparinho é a menor fração de um bilhete
de loteria.
Sua
pitoresca etimologia é ilustrativa.
No Ministério de Caxias, o Barão de
Cotegipe, ministro da fazenda, instituiu o vigésimo de bilhete para tornar a
loteria mais vendável e arrecadadora para os cofres da Coroa.
Gaspar da Silveira Martins, estuário
das oposições, vociferava contra o que entendia medida contraproducente,
atentatória às prerrogativas de austeridade e trabalho, estimuladora do jogo e
do caráter aventureiro.
Eis que, de
repente, inverteram-se as posições da gangorra política.
O liberal Gaspar da Silveira Martins assumiu o
cargo de ministro da fazenda do novo ministério, substituindo Cotegipe.
Ao assumir, tendo presente os
ruidosos aplausos da pretérita oposição, revogou o decreto de seu antecessor,
registrando a seguinte justificativa:
“Considerando
que a subdivisão de bilhetes de loteria em vigésimos tende a subtrair as
classes mais desfavorecidas da fortuna os hábitos de trabalho honesto e
paciente economia, que fazem das famílias e a riqueza dos Estados, pela paixão
do jogo, que alucina o espírito e estimula a dissipação, que produz quase
sempre o crime. Hei por bem revogar o decreto número 6275, de 2 de agosto de
1876, que autorizou a subdivisão até vigésimos dos bilhetes da loteria da
Corte.”
Passados quatro meses, Gaspar começou
a se defrontar com os gastos incontornáveis, com a irresistível pressão de
demanda.
Assinou novo decreto, estabelecendo a
subdivisão do bilhete em décimos.
Estava criado o gasparinho ou
gasparino.
Como até hoje ocorre, um décimo do
bilhete poderia ser vendido isoladamente.
Às favas a eloquente justificativa.
O povo tem memória curta.
É verdade, mas avisos não faltam.
Dr. Gaspar da Silveira Martins
(Do livro “História e
Curiosidades”, de César Pires Machado)
Jogo do Bicho
(Na visão de Machado de Assis)
“Jogar no bicho não é um eufemismo
como matar o bicho. O jogador escolhe um número, que convencionalmente
representa um bicho, e se tal número acerta de ser o final da sorte grande,
todos os que arriscaram nele os seus vinténs ganham, e todos os fiaram dos
outros perdem. Começou a vintém, e dizem que está em contos de réis.”
(Machado de Assis –
1839-1908, Outros Contos: “O Jogo de
Bicho”)
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