quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Os literatos e o jogo-do-bicho



Machado de Assis - 35 anos

Por mais de uma vez, em contos, crônicas e romances, aludiu Machado de Assis às loterias, em cujos bilhetes via o emblema da luta de Jacó com o anjo. Isso nos faz supor que o mestre, escondidamente, como era de seu feitio, teimou em comprar o seu gasparinho*, certo de que, conforme escreveu nas Relíquias da Casa Velha – “a loteria é mulher, pode acabar cedendo um dia.”

Se o Presidente da Academia se aventurou à caçada da sorte-grande, não é de estranhar que Guimarães Passos, poeta menor e boêmio, se dedicasse a uma caçada mais modesta, teimando em jogar-no-bicho.


Guimarães Passos

Em verdade, para o poeta dos Versos de um simples, o jogo-do-bicho constituiu, se não um recurso para viver, pelo menos um expediente para sonhar. E sonhar de um modo parcimonioso e diário. Em lugar da sorte-grande, o prêmio pequeno, que daria para um mês ou dois de vida generosa.

Certa vez, subiu ele o morro, para buscar uma camisa em casa da lavadeira. Esta, ao vê-lo, impôs-lhe silêncio, com o dedo na boca.
– Fale baixo – sussurrou.
E apontando para o interior da casa:
– Seu José está sonhando com o bicho que vai dar.
O semblante do poeta, que era de irritação, desanuviou-se por completo. E ele, agora risonho, acomodou-se numa cadeira, para esperar sentado a camisa e o palpite.

De outra vez, entrou Guimarães Passos na Livraria Garnier e, chamando de parte João Ribeiro, tomou cinco tostões ao filólogo para jogar na cabra:
– É matemático – afirmou – hoje, com toda a certeza, dá cabra.
E ao cair da tarde trazia o dinheiro do prêmio:
– Eu não lhe dizia que dava cabra?

Tempos depois, por ocasião do enterro de José do Patrocínio, seu velho amigo e companheiro de roda boêmia, o poeta fez questão de ser o último a deixar o campo-santo.
Olegário Mariano, que o tinha acompanhado, veio à frente, com outros amigos, e ficou a esperá-lo no portão principal do cemitério. Dez minutos depois, vendo que o poeta não aparecia, saiu a procurá-lo. E o encontrou ajoelhado junto à sepultura de José do Patrocínio, falando ao amigo morto:
– Zeca, eu trabalhei anos e anos no teu jornal e só de longe em longe te lembraste de me pagar. Agora, meu filho, tem paciência. Trata de me dar uma ajuda. Eu tomei nota do número de tua sepultura e vou jogar nesse milhar. Por favor, Zé do Pato, não abandones este amigo velho. Tu sabes que eu ando apertado. Dá um jeito de eu ganhar.
No dia seguinte, jogou alto.
E parece que acertou...

(Do livro “Pequeno Anedotário da Academia Brasileira”, 
de Josué Montello)

*Gasparinho ou Gasparino


Irreconhecíveis as oposições quando se transformam em governos.
Rasgam-se os discursos, revogam-se os compromissos, altera-se a lógica, desaparecem as ideologias.
O povo, ingênuo e bom, manso e pacífico, insiste em desconhecer o império das conveniências.
Há mais de um século, o “gasparino” ou “gasparinho” aponta para essa pertinaz ocorrência.
Mas afinal, o que é gasparinho ou gasparino?
Escondido no recôndito dos dicionários, vê-se que gasparinho ou gasparinho é a menor fração de um bilhete de loteria.
Sua pitoresca etimologia é ilustrativa.
No Ministério de Caxias, o Barão de Cotegipe, ministro da fazenda, instituiu o vigésimo de bilhete para tornar a loteria mais vendável e arrecadadora para os cofres da Coroa.
Gaspar da Silveira Martins, estuário das oposições, vociferava contra o que entendia medida contraproducente, atentatória às prerrogativas de austeridade e trabalho, estimuladora do jogo e do caráter aventureiro.
Eis que, de repente, inverteram-se as posições da gangorra política.
O liberal Gaspar da Silveira Martins assumiu o cargo de ministro da fazenda do novo ministério, substituindo Cotegipe.
Ao assumir, tendo presente os ruidosos aplausos da pretérita oposição, revogou o decreto de seu antecessor, registrando a seguinte justificativa:

“Considerando que a subdivisão de bilhetes de loteria em vigésimos tende a subtrair as classes mais desfavorecidas da fortuna os hábitos de trabalho honesto e paciente economia, que fazem das famílias e a riqueza dos Estados, pela paixão do jogo, que alucina o espírito e estimula a dissipação, que produz quase sempre o crime. Hei por bem revogar o decreto número 6275, de 2 de agosto de 1876, que autorizou a subdivisão até vigésimos dos bilhetes da loteria da Corte.”

Passados quatro meses, Gaspar começou a se defrontar com os gastos incontornáveis, com a irresistível pressão de demanda.
Assinou novo decreto, estabelecendo a subdivisão do bilhete em décimos.
Estava criado o gasparinho ou gasparino.
Como até hoje ocorre, um décimo do bilhete poderia ser vendido isoladamente.
Às favas a eloquente justificativa.
O povo tem memória curta.
É verdade, mas avisos não faltam.
O gasparinho ou gasparino continua a nos alertar.


Dr. Gaspar da Silveira Martins
  
(Do livro “História e Curiosidades”, de César Pires Machado)

Jogo do Bicho

(Na visão de Machado de Assis)

“Jogar no bicho não é um eufemismo como matar o bicho. O jogador escolhe um número, que convencionalmente representa um bicho, e se tal número acerta de ser o final da sorte grande, todos os que arriscaram nele os seus vinténs ganham, e todos os fiaram dos outros perdem. Começou a vintém, e dizem que está em contos de réis.”

(Machado de Assis – 1839-1908, Outros Contos: “O Jogo de Bicho”)


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