terça-feira, 16 de agosto de 2016

Ora Bolas II

(Histórias sobre Mário Quintana)

(30 de julho de 1906 – 5 de maio de 1994)


Paredes

O pintor Waldeny Elias atende à campainha de seu ateliê na Rua General Vitorino e lá está Mario Quintana. Viera agradecer pelo presente, uma pintura de bolso, de 6cm x 4cm. Levava-a, contou com um sorriso português, “na algibeira do fato domingueiro”. Retribuiu presenteando o velho amigo, a quem chamava de Pinta-Mundos, com o recém-lançado livro Do Caderno H.
Na dedicatória, justificou por que não havia aceito um quadro grande que o pintor lhe oferecera.
– Elias, me desculpe e acredite. Eu não tenho paredes. Só tenho horizontes...

Indecisões

Em 1984 a Editora Globo convidou-o para ir ao Rio de Janeiro revisar as provas da reedição do livro infantil O Batalhão das Letras, que seria lançada 43 anos depois da edição original. A sobrinha e secretária Elena Quintana foi junto. Hospedaram-se no Hotel Glória e a editora combinou que, no dia seguinte, alguém passaria lá para pegar as provas corrigidas.
Desde a manhã Mario trancou-se na dúvida entre um “e” e uma vírgula em determinado poema. Botava o “e” e tirava a vírgula, tirava a vírgula e botava o “e”, pedia a opinião de Elena, desistia do “e” e voltava à vírgula. Ainda estava nessa quando por volta das seis da tarde o telefone tocou informando que chegara o mensageiro da editora.
– Tio, o homem está aí. Te decide.
– Pois é... O que achas?
– Eu acho que é “e”.
– Então tá: põe vírgula.

Primo Borges

Um amigo de Mario viajou para Buenos Aires e foi visitar Jorge Luís Borges na Biblioteca Nacional. Conversa vai, conversa vem, falaram no poeta brasileiro e Borges disse que já havia lido alguma coisa dele. O amigo mencionou o nome completo, Mario de Miranda Quintana. Borges interessou-se: “Então é meu parente, eu tenho Miranda na família”.
Quintana, claro, ficou sabendo da história. Quando Borges morreu, ele comentou com Sérgio Faraco: “Morreu feliz, morreu pensando que era meu primo”.

Vocação

Quando esteve pela primeira vez no Rio de Janeiro e em São Paulo, os repórteres perguntaram por que não tinha saído do Rio Grande do Sul. Respondia: “Não saio de lá pelo mesmo motivo que vocês não saem daqui”.
Antes, bem antes disso, quiseram saber em Porto Alegre por que saíra de Alegrete.
– Lá quem não é estancieiro é boi. Como não tenho vocação para nenhuma das duas coisas, vim para Porto Alegre.

Vales

Na época em que trabalhava na editora Globo ele andava sempre duro. Como o salário terminava antes do fim do mês, vivia pedindo vales de adiantamentos. Até que um dia o caixa chiou:
– Mas seu Mário, o senhor já tem monte de vales!
Quis saber, com aquele sorriso maroto:
– Afinal, são vales ou são montes?

Chateaçõezinhas

Na maior parte das vezes que andou em hospitais, Mario dividia o quarto com alguém. Desta vez, ao lado dele estava outro velhinho, quer dizer, outro senhor entrado em anos. A enfermeira irrompia no quarto:
– Hora do seu remedinho...
Pouco depois:
– Hora da sua sopinha...
Mais tarde:
– Vamos arrumar essas cobertinhas...
Sempre os tais diminuitivos que ele tanto odiava. Virou-se para o companheiro:
– Daqui a pouco ela vai entrar aqui e dizer: “Olha como eles estão agonizantezinhos...”.

Cartomante

Na juventude, em Alegrete, foi consultar uma cartomante. Ela pediu que olhasse fixamente para a bola de cristal, se concentrasse e lhe dissesse o que via.
– A ponta do meu nariz.
Mais tarde, bem mais tarde, Mário contou para Dulce Helfer que, naquela consulta, a cartomante dissera que aos 60 anos ele ficaria famoso. E exatamente no ano dos 60, 1966, foi homenageado pela Academia Brasileira de Letras e teve matéria publicada na revista O Cruzeiro – primeira grande reportagem sobre ele, tornando-o nacionalmente conhecido. Mistérios...

Dor de dente

Três dias antes de morrer, no Hospital Moinhos de Vento, ele achou inspiração para escrever uma frase e dá-la de presente às enfermeiras. Ao contrário da letra grande e quase ilegível dos últimos meses, mesmo tremida desta vez ela está miúda e nítida:“A maior dor do mundo é pente com dor de dentes’’.

Mário Quintana nasceu em Alegrete-RS, na noite de 30 de julho de 1906. Fazia um grau abaixo de zero. Morreu em Porto Alegre, em 5 de maio de 1994.

Ora Bolas - O humor de Mario Quintana - Juarez Fonseca- LP&M Pocket.



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