domingo, 5 de junho de 2016

Toco de lápis



Minha neta, como toda a criança, gosta de pintar, riscar com lápis; agora já lê e vai escrever muito, promete-me ela.

Dias desses, frente ao papel rasurado, impacientava-se por lhe faltar o lápis azul para dar últimos toques às asas da borboleta. Remexe daqui, dali, e só encontra lápis sem ponta. “Mas, quantos abandonados na caixa!”, disse-lhe. Assim ocorre por que ela, com suas mãos ainda desajeitadas, ao desenhar ou pintar, força o grafite contra o papel, quebrando-o. Para ela, a solução é jogar de lado o rompido e tomar outro. Peguei de um e, com meu inseparável canivete, afilei sua ponta azul-marinho. E aproveitei o momento para repetir a operação nos demais em desuso, talvez duas dúzias, abandonados, despertando-me a satisfação de segurar, apontar,  e remover pequenas irregularidades, para deixá-los roliços. E dos cortes e das maravalhas reacendia um aroma de madeira, característico de uma particular marca, a me transportar aos tempos de guri.

Devo já ter contado, e repito sem mentir, a alegria que tive ao ganhar do pai o primeiro lápis. Lembro que, chegado da cidade, a mãe lhe indagou se trouxera para as crianças.

‒ Toma aqui.

‒ Um só?

‒ Corta ao meio, metade para cada um.

A alegria inicial ficou um tanto esvaecida pela determinação de nosso pai. Mas assim era preciso. Na carestia, tudo comedido, era um tempo de máximo aproveitamento dos bens, sem o desperdício de hoje. Éramos dois os filhos, minha irmã e eu, que iríamos aprender a riscar e, talvez, escrever. Se dois são, consentiu a mãe, um pedaço para cada um que eles ainda têm mãos pequenas. E, ajustando a faca, avaliou o meio, marcou a posição do corte. E junto à secção fez as pontas, para que, no outro extremo, permanecessem perfeitas as do famoso fabricante. E, com jeito, afinou a madeira cheirosa, do mesmo aroma de agora. Metade pra mim, outra pra minha irmã; que cuidássemos para não quebrar as pontas.

Hoje, por segurança, os apontadores, para eliminar eventuais pequenos acidentes, que ocorriam com a manipulação de giletes e canivetes, são rombudos; com lâminas de fio gasto, rompem o fraco grafite, exigindo avanço nos afinamentos e reduzindo o tamanho do lápis. Na época de guri, essas preocupações ainda não existiam; usava-se canivete para tudo: apontar lápis, palito, raspar e falquejar forquilhas para fazer bodoque. Empregavam-se as mãos nessas pequenas tarefas. Um tio, bem me lembro, caprichoso marceneiro, com cepilho aprontava nossos lápis em cortes longos e uniformes, uma beleza, e nós esfregávamos entre os dedos as cavaquinhas desbastadas para despertar o suave e característico aroma da madeira.

Ainda agora, o perfume me transporta àquela tarde, lá vão quase 70 anos, em que a faca rude partira o lápis ao meio. Seja possivelmente da época minha predileção por tocos, por seu significado, com eles não há desperdício e podem ser alongados com tubos de taquara fina. Toda a vez que se corta, é o mesmo aroma, e vem a lembrança de antigamente, de Dom Pedrito, do imenso campo espraiado, quase esquecido. Tudo imenso para nossa visão de infância; tudo parecia ser grande, a mangueira, o mato, as árvores, o gado, o tempo, a espera, e até a sanga que transbordava nas épocas de cheia.

Nestes tempos atuais, continuo a levar comigo um toco no bolso; pouco espaço exige. Serve para assinalar, marcar, não vaza tinta nem mancha a roupa; é auxílio a registrar o que a memória, talvez, já não mais contaria.

Texto de Celito M. Brugnara – engenheiro - 25 fevereiro de 2015




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