Osvaldo Molles*
De início, ela quis impor o
respeito. Logo no primeiro dia, dona Maricota entrou e foi dizendo para aqueles
alunos do primeiro ano primário:
– Quero
disciplina e respeito, se não, dou ponteirada!
A gente era pequeno demais e achava
imenso, enorme, aquele ponteiro com que dona Maricota apontava a lição do
quadro-negro e desapontava os malcriados com bordoadas justas e certeiras. De
vez em quando, o subdiretor botava o nariz enorme pela porta entreaberta. Aí
ela sorria. E a classe, logo no primeiro mês, começou a desconfiar que havia
namoro.
Não sei por que é que ela implicou
comigo. Acho que era por causa do «pé descalço – pé calçado». É que pobre faz
assim: compra um par de calçado só. Um irmão calça o pé direito, o outro calça
o esquerdo. E o dedão de fora está sempre amarrado num pano sujo de poeira.
Dona Maricota não gostava da tapeação. E intimidava:
– Seu
Osvaldo, se esse pé não sarar até o dia 21 de abril, dou ponteirada!
É que, naquele tempo, o Brasil tinha
sido descoberto no dia 21 de abril. Depois, descobriram o Brasil no dia 3 de
maio. E a 21 de abril havia festa. Aí, então, os irmãos que calçavam o mesmo
número tiravam o par ou ímpar. Quem ganhava ia à festa. Eu nunca fui, talvez
por causa do meu azar em jogo.
Entretanto, dona Maricota costumava
sorrir para os três alunos mais bem penteados e bem vestidos da classe. Um
deles era o Peixotinho, de colarinho sempre alvo e de gravatinha preta. Levava
«manteiga do sítio de papai» para dona Maricota e era o primeiro da classe. Era
talentoso na arte de agradar. E tinha um futuro brilhante. Dona Maricota
acreditava no futuro do Peixotinho. Hoje, ele é vendedor de bananas na rua da
Cantareira.
Foi um pó de arroz antigo, cheirado
de passagem, que me trouxe essas lembranças de dona Maricota. E, apesar de
tudo, a gente sente saudade do perfume tênue que a professora espalhava quando
fazia o esforço de distribuir ponteiradas entre os «pé descalço ― pé calçado»
da classe.
(*) Osvaldo Molles (1913-1967) era paulista de Santos. Seu percurso foi
eclético. Deixou rastro como escritor, romancista, contista, cronista,
jornalista, radialista, compositor, letrista, roteirista. Soube captar, com
olhar lírico, a alma da gente simples de seu tempo. Foi parceiro e amigo de
Adoniran Barbosa, com quem compartilha a autoria de Tiro ao Álvaro (1960),
gravada pelos Demônios da Garoa e por Elis Regina.
O conto aqui transcrito foi publicado no livro Piquenique Classe C –
Crônicas e flagrantes de São Paulo, lançado em 1962 pela Boa Leitura Editora. A
obra, com 63 crônicas, traz ilustrações de Clóvis Graciano e prefácio de
Hermínio Sacchetta. Reúne textos esparsos que o autor havia publicado em meia
dúzia de periódicos, entre eles a Folha de São Paulo, a revista Manchete, o
jornal Diário da Noite.
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