Momento numa biblioteca
(Excerto)*
Ricardo Silvestrin
(Poeta)
Momento num café
Manuel Bandeira
Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.
Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.
Este poema é
cinema.
Há um olhar-câmera que mostra as
cenas. Vai passando o cortejo do enterro pela rua. Um grupo de homens no café,
na calçada, tira o chapéu num gesto habitual, ritualizado, de respeito. São
tomados de surpresa, interrompidos na conversa sobre coisas corriqueiras do dia
a dia. Não os distinguimos individualmente. É uma panorâmica, um passeio de
câmera que os flagra tirando o chapéu e, quem sabe, recolocando-o e voltando à
conversa. O olho-câmera encontra, no grupo, um homem que contrasta com os
outros e fecha-se o foco nele. Esse observa pensativo o caixão enquanto seu
chapéu segue em sua mão.
E, como, além da conversa, é poesia,
há dois comentários no poema, um para cada cena. Na primeira, o poeta nos diz
que os homens saudavam o morto distraídos, absortos na vida. Na segunda, que o
homem que se demorava olhando o esquife sabia que a vida é traição.
Muito pensei sobre esse verso. Um dia
me dei conta: sim, a gente nasce, mas vai morrer. Aí está a traição. Confiamos
na vida, mas ela, inevitavelmente, nos trairá. Também, em seguida, há a ideia
de que o corpo que morreu, a matéria que passava, está enfim liberto da alma. A
alma, a psiquê, o que quer que mova esse corpo, extingue-se livrando-o dessa
agitação feroz sem finalidade que é a vida.
Em treze versos, bandeira nos revela
uma visão sobre a vida e sobre a morte nesse encontro entre as duas, por um
momento, num café. Não há uma rima. Os versos não têm um número de sílabas regular,
uma métrica fixa. Há sim essa conquista formal dos poetas da sua geração de
construir o poema pelo ritmo da fala, com versos longos e curtos. Uma fala
prosaica, carregada de poesia.
*Excerto: parte do texto.
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