“O Bêbado e a Equilibrista” é uma das
mais famosas músicas que berraram nos ouvidos da ditadura militar que
assolou o Brasil de 1964 a 1982. A música foi composta por Aldir Blanc e
João Bosco e lançada no LP “Linha de Passe”, em 1979 e gravada por
Elis Regina, voz que deu forma à música e ficou conhecidíssima.
Como a doce adjetivação da esperança ‒ equilibrista ‒ existem muitas possibilidades para as geniais – e geniosas – metáforas de Aldir Blanc. Como a de que as “estrelas” seriam generais e “céu”, a prisão.
Betinho, sociólogo, ativista pelos direitos humanos, perseguido e exilado na época do regime militar, era irmão do, também genial, Henrique de Souza, o cartunista Henfil, este que foi apresentado ao compositor Aldir Blanc por sua amiga, a cantora Elis Regina, no verão de 1975, iniciando assim uma boa amizade.
Henfil costumava encher os ouvidos do amigo de suas memórias do “mano” Betinho, exilado desde 1971.
Sensibilizado com o
falecimento de Charlie Chaplin, João Bosco compôs uma linda melodia em sua
homenagem e chamou Aldir para mostrá-la. Aldir letrou a música e fez uma
singela homenagem ao rimar “Brasil” com “irmão do Henfil”, esta rima, que por sua vez teve papel de emoção, mobilização, transformação e
incentivo a uma nação reprimida. Aldir afirmou que se dissesse
“Betinho”, ninguém reconheceria, a referência ao irmão Henfil era
mais forte, ele já tinha fama na época, enquanto a imagem pública de Betinho
veio a se formar com força já pelos anos noventa, principalmente após a criação
da “Ação da Cidadania”.
Herbert de Souza, o Betinho, ouviu pela primeira vez a canção, na doce voz de Elis, exilado no México. Seu irmão o telefonou e pôs, sem nada avisar, para que ouvisse. Ao enviar a fita cassete, Henfil escreveu um recado: “Mano velho, prepare-se! Agora nós temos um hino e quem tem um hino faz uma revolução!”. Dito e feito!
A campanha pela anistia irrestrita foi a primeira movimentação nacional que obteve sucesso desde o início da sangrenta ditadura militar no Brasil. Vários manifestos ocorreram no mundo inteiro, inclusive a Conferência Internacional da Mulher, no México, que fez de 1975 o Ano Internacional pela Anistia.
Em 1979, Betinho desembarcou no Aeroporto de Congonhas e se deparou com uma manifestação: Cerca de duzentas pessoas cantavam “O Bêbado e a Equilibrista”.
O bêbado e a equilibrista
João Bosco e Aldir
Blanc
Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos...
A lua,
Tal qual a dona do bordel,
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel.
E nuvens!
Lá no mata-borrão do céu,
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco!
Louco!
O bêbado com chapéu-coco
Fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil.
Meu Brasil!...
Que sonha com a volta
Do irmão do Henfil.
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete.
Chora!
A nossa Pátria
Mãe gentil.
Choram Marias*
E Clarices*
No solo do Brasil...
Mas sei, que uma dor
Assim pungente.
Não há de ser inutilmente
A esperança...
Dança na corda bamba
De sombrinha
E em cada passo
Dessa linha
Pode se machucar...
Azar!
A esperança equilibrista
Sabe que o show
De todo artista
Tem que continuar...
O bêbado (1) e a equilibrista (2)
Caía (a) a tarde feito um viaduto
(3)
E um bêbado trajando (b) luto (4)
E um bêbado trajando (b) luto (4)
Me lembrou Carlitos... (c)
A lua, (5)
Tal qual a dona do bordel, (6)
Pedia a cada estrela fria (7) um brilho de aluguel (8)
Pedia a cada estrela fria (7) um brilho de aluguel (8)
E nuvens! (9)
Lá no mata-borrão (d) (10) do céu
(11)
Chupavam manchas (12) torturadas (13),
Chupavam manchas (12) torturadas (13),
Que sufoco! (d)
Louco!
O bêbado com chapéu coco
O bêbado com chapéu coco
Fazia irreverências mil (14)
Pra (f) noite do Brasil (15),
Pra (f) noite do Brasil (15),
Meu Brasil!...
Que sonha com a volta do irmão do Henfil (16)
Com tanta gente que partiu (17)
Que sonha com a volta do irmão do Henfil (16)
Com tanta gente que partiu (17)
Num rabo-de-foguete. (g)
Chora a nossa pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarices (18) no solo do Brasil.
Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança dança na corda bamba de sombrinha (h)
E em cada passo dessa linha pode se machucar
Azar! (i)
A esperança dança na corda bamba de sombrinha (h)
E em cada passo dessa linha pode se machucar
Azar! (i)
A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar
Comentários gerais:
(a) Ao cair da tarde significa ao
fim da tarde, o pôr do sol. Também se pode dizer o cair da noite, que é um
pouco mais tarde, quando já não se tem nenhum sinal do sol e a noite está
declarada.
(b) Vestindo.
(c) É como chamamos carinhosamente o vagabundo personagem de Charles Chaplin.
(d) Equipamento de escritório que caiu em desuso juntamente com as
canetas-tinteiro.
(e) Um sufoco, no sentido figurado, significa uma situação sem saída,
desesperada. Pode-se dizer assim: "Estou no maior sufoco."
(f) Pra = para. Por ser uma
palavra monossílaba, temos a tendência de acentuá-la, o que seria um erro, já
que "para" não é acentuada.
(g) Significa uma situação
potencialmente perigosa, uma "furada", uma "fria". Pode-se
dizer assim: "Entrei numa (canoa) furada" ou "Entrei numa
fria" ou "Entrei pelo cano" ou ainda "Peguei um
rabo-de-foguete."
(h) Existe a sombrinha, que é um
guarda-chuva pequeno, geralmente colorido que pode ser usado tanto para se
proteger do sol como em dias de chuva. Privativo das mulheres. Existe também o
guarda-chuva propriamente dito, maior do que a sombrinha, geralmente preto e
utilizado por ambos os sexos.
(i) Uma expressão de desprezo
pela sorte, de ausência de medo. Após receber uma advertência sobre algum
perigo que desprezamos podemos dizer: "Azar!", ou
"Dane-se!" ou "Não estou nem aí!" ou ainda "E
daí?!"
Comentários políticos:
(1) O bêbado representa os
artistas, poetas, músicos e "loucos" em geral, que embriagados de liberdade
ousavam levantar suas vozes contra a ditadura.
(2) A equilibrista era a
esperança de democracia, um projeto de abertura política gradual, que a cada
"eleição", a cada evento que incomodava os militares (passeatas,
etc), tinha sua existência ameaçada.
(3) Um viaduto, obra do governo,
caiu, desabou sobre carros e ônibus cheios de pessoas, matando muita gente. Na
época, nada pôde ser noticiado nem as pessoas foram devidamente ressarcidas ou
indenizadas. Cidade de Belo Horizonte, viaduto da Gameleira, década de 70.
(4) Referência aos militantes de
esquerda que foram "sumidos" ou declaradamente assassinados sob
tortura.
(5) A lua representa os políticos
civis que se colocaram a favor do regime, a fim de obter ganhos pessoais. Eles
"acreditavam" tanto na propaganda oficial que se dizia que se um
general declarasse que a lua era preta eles passariam a defender tal tese como
verdade absoluta. Em determinada época foram até chamados de luas-pretas.
(6) A Câmara de Deputados e o
Senado foram algumas vezes comparados a bordéis devido aos negócios imorais que
lá se faziam. É claro que os cidadãos indignados não podiam dizer claramente
que pensavam isto, ou seriam no mínimo processados por calúnia, injúria,
difamação e etc.
(7) As estrelas são os generais,
donos do poder. Alguns deles nunca apareceram como governantes, preferindo
manipular nos bastidores. Se contentavam com uns poucos privilégios
astronômicos e umas ninharias de cargos de direção em estatais ou o poder de
nomear umas poucas dezenas de parentes e correligionários em empregos públicos.
(8) O brilho de aluguel era, como
mencionado acima, os ganhos pessoais e até eleitorais obtidos pelos civis que
aceitavam ser marionetes. Alguns destes civis cresceram tanto que ultrapassaram
em poder os seus "criadores" fardados.
(9) Os torturadores são aqui comparados a nuvens, pois eram
intocáveis e inalcançáveis.
(10) O mata-borrão é um
instrumento antiquado destinado a eliminar erros, borrões na escrita. O
DOI-CODI, nossa temível polícia política da época era o mata-borrão do regime
(instrumento antiquado destinado a eliminar erros).
(11) As prisões eram
inalcançáveis ao cidadão comum, inacessíveis, por isso a comparação com o céu.
(12) Os rebeldes são comparados a
manchas, ou seja, um erro na escrita, uma coisa fora da ordem, uma
indisciplina.
(13) Referência à tortura
aplicada aos militantes de esquerda, que ocorria às escondidas. O regime jamais
admitiu que torturava pessoas, porém nunca houve punições aos casos que
conseguiam alguma divulgação, apesar da censura à imprensa.
(14) Os artistas nunca se calaram. Esta música, ele própria
é uma das irreverências.
(15) Um tema recorrente nas
músicas da época. A volta das liberdades políticas é comparada ao amanhecer,
bem como a ditadura é comparada à noite.
(16) O Henfil (Henrique Filho)
era um afiadíssimo cartunista político muito visado pelo regime, bem como seu
irmão o Betinho, que no governo Fernando Henrique organizou o programa de
combate à fome. Os dois eram hemofílicos e morreram de Aids.
(17) Referência aos exilados políticos.
(18) Maria* é a esposa do operário
Manuel Fiel Filho morto sob tortura nos porões do DOI-CODI (SP) em janeiro de
1976 e Clarice* é a esposa do jornalista Vladimir Herzog, também morto sob
tortura, no DOI-CODI (SP) em outubro de 1975.
(Do Blog O Ponto de
Encontro)
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