sábado, 26 de março de 2016

O cabo eleitoral

(Conto de Idalécio Vitter Moreira)*


Todo o dia, desalentados, confiando bigodes e sacudindo cabeças... os convencionais reiniciaram conversações. Não desatavam o nó, encroado. Em certos momentos, quando tudo parecia deslindar-se, alguns até abraçando-se, ensaiando um fato novo. Os articuladores, então, retomavam conversações entre os três candidatos... Ajustava um detalhe, desajustava outro; de acerto em desacerto as horas troteavam.

No salão grande, de festas – cuias, velhos arreios, chifres enormes e todo tipo de adereços à gaúcha, pelas paredes e teto – atravancados nos lábios, palheiros sem cessar queimando, catinguentos, estratégias sussurradas – em convenção escolhiam o candidato a prefeito.

Cabeça melenuda em pé, olhos melados, abelhudos, bombacha larga, dessas preguedas, botas lustradas, lenço-nó-de-festa abanando, Ramalho tossia disfarçando e... metia-se bem-sim-senhor nos pequenos grupos, esquecendo do “com permício” ou do “dá licença, companheirada”. Enfiava-se oferecido, dando palpites e, sem quase ouvir ponderações, caminhava para outro agrupamento. Sem tréguas, ia a um dos candidatos, abraçando-o espalhafatosamente, bigode penteado roçando a cara do pretendente, parecendo cochichar “sou dos seus”. Meia volta, olhos comprimidos, derretendo-se, enlaçava num gordo abraço o outro. Ia ao terceiro... Para todos tinha-se a impressão de lembrar que era “um dos seus”.

O dia inteiro, escorrido todo em discussões repetitivas, encurtava sem a decisão esperada. De impasse em impasse, as horas gotejavam como roupa molhada em varal, finando-se a tarde com o quadro inalterado. Às pretensões dos três candidatos, e seus correligionários, mantinham-se encalacrados. Ninguém cedia uma teta que fosse.

Ramalho, impertinente, persistia na teimosa romaria. De grupo em grupo. De candidato em candidato – estabanado, bigode cutucando a cara dos postulantes, fala cochichada, ares de cumplicidade e abraços de quem já pensa numa secretaria municipal, numa subprefeitura...

Distribuídos por três cantos do salão, os candidatos e seus cupinchas não faziam concessões. Apenas havia um bolo, e cada qual o queria inteiro!

O trabalho dos articuladores não esfriava – de canto para canto, de leva e traz, de arreglos, mas... nada. Às vezes alguém rompia a cadeia de cochichos: “solucionada a questão!” Cabeças voltavam-se em busca do anúncio, vozerio sumia... Porém, no rabo do eco, alguém recomendava: “Ainda não será para agora...”

Quase noite, quando o desenlace estava mais difícil que parto de terneiro atravessado, deu-se o ajuste conciliador: de um dos grupos sairia o candidato. Do outro, o vice. E do terceiro, algumas secretarias e subprefeituras estratégicas – caso o partido vencesse as eleições municipais!

Ramalho, sorriso de boca escancarada, faceirice de cusco lambendo os pés do dono, bigodes na cara do candidato, abandonou o local da convenção com o escolhido aos abraços, talvez a acentuando que era “um dos seus”.

*****

*Idalécio Vitter Moreira nasceu em Hulha Negra, à época distrito de Bagé, em 24-2-1945. Fez o curso de Técnico Agrícola na ETA-Viamão e, após, transferiu-se para Lagoa Vermelha, onde passou a atuar como professor nesta área. Licenciou-se em Língua Portuguesa e Literatura e passou a lecionar. Freqüentou - sem concluir - pós-graduação em Literatura Brasileira e também ministrou aulas de Sociologia, para o curso de Magistério. Idalécio Vitter Moreira: gaúcho, jornalista e professor. Faleceu em 2004. Deixou Fragmento (contos e crônicas), A quatro mãos, O Silêncio dos Homens e o inédito Os votos do Padre & Outras estórias. 


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