segunda-feira, 28 de março de 2016

Dois valentes

Januário de Freitas Simões Pires


Depois de muito tempo sem se verem, os velhos amigos, que uma diferença apartara, encontraram-se na divisa do campo.
– Bueno, compadre, que tal le vai?
– Bem, gracias, e por lá como vão? A comadre, o afilhado...
– Vão indo como Deus quer e manda.

De um lado, o coronel Severo, gaúcho de têmpera, veterano da revolução de 93, tipo austero, era a figura típica dos patriarcas de antanho. Conservara hábitos e costumes dos seus antepassados, os primeiros povoadores do Rincão, e os cultivava com orgulho e certa sobranceria. Herdeiro de glórias farroupilhas, era respeitado e acatado pelos vizinhos. Embora já idoso, não falhava campereada e era, com firmeza, quem metia o cavalo no rodeio para apartar o novilhada gorda para a charqueada. Nas horas de lazer, principalmente no inverno, quando o minuano guasqueava as coxilhas com seu frio cortante, ele ficava no galpão, tomando chimarrão e emendando algum laço rebentado ou fazendo botões e corredores de tento fino.

Tinha especial habilidade nesse mister, para o que usava sempre, na cintura, uma afiada faquinha de cabo de prata. Pendurava a lonca de couro no esteio do galpão, corria a faca, e o tento saía parelho. Inclinava a mão mais para um lado, e desquinava o tento que ficava assim, pronto para costurar os aperos.

Sua estância era grande e com poucas divisas. O gado andava às soltas, pelos altos e baixados, pela costa do Ibicuí, ora procurando sombras e pastagens, ora nos paradores, fugindo da mutuca. A lotação do campo vinha aumentando e como este estava com uma divisa ainda aberta, o gado da vizinhança ajudava aumentá-la. O pasto vinha escasseando e o rebanho estava fraco.

– Se o inverno vier rigoroso – dizia o coronel – o tendal vai ser grande. Inda mais com essa maldita afetosa...

Resolveu, por isso, correr o aramado na divisa com o Compadre. Assim pensando, entrou em entendimento com o vizinho, mas não chegaram a um acordo.

Achava o coronel que a divisa devia partir da Sanga da Areia, vindo morrer no Capão do Angico. O outro contrariava, julgando-se prejudicado. Insistia o Coronel Severo, com sua autoridade nunca contestada.

Sempre ouvira dizer por seu pai que a divisa era por ali. Até alcançara os marcos de pedra que depois desapareceram.

As relações de ambos foram ficando estremecidas. Cessaram as visitas domingueiras. Nem o afilhado ia mais pedir a bênção ao padrinho. Com receio de se encontrarem, deixaram de assistir à carreira do zaino do Major Machado com o baio do Alegrete.
– Não quero brigar com meu compadre – dizia o Coronel. – Mas ele não tem razão. Não passa de um teimoso e arreliento.

O compadre, por sua vez, dizia:
– Não abro mão dos meus “direitos”. Respeito muito o Coronel; a comadre é uma santa e Quinca é como se fosse meu filho... Mas razão é razão...

Os vizinhos ouviam os pontos de vista de ambos e ficavam contrafeitos. Não queriam tomar partido, e diziam uns:
– Aquela coisa ainda vai dar em “porquera”.
– Ambos são opiniáticos, brabos e teimosos, acrescentavam outros.

O compadre andava sorumbático. Falava sozinho... Montava a cavalo e saía a esmo pelo campo, sem olhar o gado no rodeio nem dava atenção às vacas paridas e não enxergava as bicheiras nos terneiros. Monologava a meia voz... Ia ao tranquito do matungo, com o seu inseparável relho de cabo de pitangueira, duro e pesado como ferro. De vez em quando, levantava-o no ar, como se ameaçasse um inimigo invisível.

Diante dessa situação tensa, o Major Machado, também veterano de 93 e amigo comum de ambos, resolveu intervir na questão, como mediador.
– Que diabo – dizia – isto tem de terminar. Essa divergência pode separar duas antigas famílias do Rincão.

O Coronel Severo ouviu as indiretas do amigo e cortou a conversa abruptamente. Nunca tinha recuado. Não era covarde. Brigara no combate de Inhanduí até o anoitecer, sem ceder um palmo de terra ao inimigo. Não era, agora, depois de velho, que iria arrepiar carreira.

O outro também se mostrou irredutível. O Major Machado não se deu por vencido. Devagarito, foi convencendo um e depois o outro, que acabaram por aceitar a arbitragem.

O amigo marcou a divisa, com plenos poderes de ambos, que lá não apareceram. Cada um mandou buscar, no Alegrete, a parte que lhe cabia na meação.

O aramado foi feito. Moirões de guajuvira e tramas de angico. Sete fios de arame Gorgon, daqueles que não vem mais. Trabalho bem feito, pois ainda havia bons alambradores. O arame esticado como corda de viola, zunia quando soprava o vento norte.

Os ânimos se acalmaram. Não se falou mais no assunto. Mas, aquela velha e tradicional amizade, não voltou a ser o que dantes era. Cada uma na sua fazenda, sem querer ser o primeiro a dar o braço a torcer.

De uma feita, quando ambos recorriam os seus campos, o acaso fez com que se encontrassem um de cada lado da divisa litigiosa.
– Buenas, compadre, que tal te vai?
– Bem, gracias, e por lá como vão? A comadre, o afilhado...
– Vão indo como Deus quer e manda...

Contrafeitos, conversaram pouco sobre assuntos banais. Falaram na seca que já estava forte... No tempo firme... Na peste que já estava pintando... E, conversa vai, conversa vem, olharam para o aramado e, sem querer, falaram no trabalho dos alambradores... Aos poucos o assunto veio descambando para a divisa e... deu-se o inevitável.

Todos os pensamentos recalcados e ocultos naqueles cérebros bárbaros, toda a raiva concentrada, mas latente em seus espíritos, rebentaram subitamente como açude arrombado pela enchente e, aos borbotões, se concretizaram em remoques e ofensas recíprocas.

Montado em seu tordilho-negro, o Coronel Severo, de longo cavanhaque branco, era a figura do centauro dos pampas, vibrando na eclosão de sua bravura nunca desmentida. O compadre violento e agressivo, revidava e ofendia, gesticulando com braço, tendo na mão, o seu inseparável relho de cabo de pitangueira.

No aceso da discussão, simultaneamente, bolearam a perna dos cavalos e tentaram, ao mesmo tempo, transpor a cerca, para um corpo a corpo. Dirigiram-se para o mesmo vão de tramas e, como o arame estava bem esticado, ficaram ambos presos entre dois fios, inclinados, de frente um para o outro. O compadre, assim mesmo curvado para a frente e entre os dois fios com uma mão, pegou na barba do Coronel e, com a outra, levantou a pitangueira...

O Coronel Severo pressentindo quanto era séria a sua situação se recebesse o golpe, puxou da cintura a faquinha de prata, afiada como navalha e, levantou-a por baixo, encostou-a na barriga do compadre, incisivo e convincente, disse:
– Se tu baixar a pitangueira, eu te desço as tripas aqui mesmo!

E ficaram imóveis, tensos espreitando qualquer movimento partido do contendor. Um com o braço no ar, ameaçando o golpe. O outro, com a faca encostada no adversário.

Em segundos, avaliaram o desfecho trágico da luta... Por fim, o Compadre sentiu a inferioridade de sua situação, com a ponta da faca adversária a lhe beliscar o ventre. Afrouxou o braço e baixou o relho.

Cordato, manso, vencido, propôs:
 – Coronel, vamos dá por empate?

Desvencilhando-se do aramado, silenciosos, ambos montaram a cavalo, e seguiram rumos opostos, pela coxilha imensa, entrecruzadas pelos quero-queros inquietos e barulhentos.


(Do Almanaque do Correio do Povo – 1967)


(Reprodução de uma gravura de Berega)


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