Mário de Alencar
(1872-1925)
Comecei a escrever estas páginas
algumas horas antes de morrer Machado de Assis; retomei-as um mês depois, e
pelo tempo adiante, sem outro pensamento que o de fazer falar a saudade. Vão
como saíram, um pouco desconexas, conforme é o caráter delas, de páginas
soltas. Não cuidei de escrever sobre a obra do escritor, senão do homem,
contando as impressões da nossa convivência de alguns anos. Era inevitável por
isso falar também de mim; mas estou que o fiz o estritamente necessário e ninguém
achará que pretendi pôr-me em realce à conta da lembrança do meu grande amigo.
Venho da casa de Machado de Assis. Lá
estive todo o dia de sábado, ontem e hoje, e agora estou sem ânimo de continuar
a ver-lhe o sofrimento; tenho receio de assistir ao fim que eu desejo não
tarde. Eu, seu amigo e seu admirador grande, desejo que ele morra, mas não
tenho coragem de o ver morrer. O meu pensamento está com ele, e escrever sobre
ele agora é um modo de acompanhá-lo, de velar carinhosamente a seu lado nos
últimos instantes em que possa ainda aquele nobre e alto espírito pousar no
frágil corpo trabalhado. Ele ignora o horrível mal que o vai devastando; porém
sofre; e o que ele temia era o sofrimento físico, que anula o valor moral e
afeia e entorpece a criatura. Ouvi-lhe uma vez estas palavras acerca de Arthur
de Oliveira: – Levou tempo a morrer de uma moléstia grave. Uma moléstia grave
não se contenta de uma merenda ligeira, à ponta de uma mesa; não, ela quer
comer sentada e a fartar, e devagarinho, saboreando.
Não lhe perdoou essa ironia o acaso,
mestre ou inimigo de ironias. Era fina e justa a imagem, e a sorte, para
mostrar que o era, deu-lhe uma moléstia grave por companheira inseparável dos
seus últimos dias. Não bastava que ele sofresse na alma; e eu sei quanto ele
sofreu, desde que ficou só no mundo, há cinco anos. Ouvia-lhe as falas íntimas
e posso afirmar que lhe fiquei conhecendo a feição de bondade que ele trazia
talvez velada para o mundo.
Era essencialmente bom e puro, de uma
delicadeza e sensibilidade que não podia, por mais que o quisesse, acomodar-se
à rudeza das cousas e dos homens. Essa mesma delicadeza e sensibilidade o fez
tímido e aparentemente fraco, a ele que foi um forte. Contradição da natureza,
que tão bem se exprimiu no genial humor de toda a sua obra. Os que só
conhecerem o escritor não adivinharão o homem, e os que só tiverem lido
superficialmente o homem e o escritor entenderão que houve nele duas figuras
distintas e opostas, que entretanto não eram nem distintas nem opostas, senão
uma só figura, que se velava ou descobria voluntariamente, pelo respeito de si
mesma e o receio de não parecer sincera, aos olhos dos outros.
A beleza foi a sua inspiradora e
guia, a beleza divina, que é a perfeição moral e plástica; repousada para a
atitude que forma a estátua e medida para a eternidade contra a ação do tempo,
que é como um vento forte – onde lhe embaraçam o caminho com o excessivo, aí tudo
ele abate e destrói. Capaz de ser terno, com abundância de coração, Machado de
Assis escondeu no escritor a ternura do homem, e na intimidade do afeto
reservava a manifestação do seu sentimento à eloquência do gesto sóbrio. Certa
maneira de apertar a mão equivalia nele a um grito de alma; o seu olhar sabia
suprir toda a piedade e simpatia que a voz temia dizer, fugindo à ênfase de
convenção ou à palavra banal. Era por instinto e por estudo um elegante na alma
e na inteligência. Jamais lhe surpreendi o gosto da maledicência; mais propenso
a dizer e pensar o bem que o mal, não o dizia logo, sem a certeza de o dizer
acertado, para não desmoralizar o bem que dissesse. Do mal que pensava, todo ou
quase todo provinha da suspicácia, própria de um tímido e de um experimentado
que sabe discernir e raciocinar o sofrimento.
Tinha o espírito forrado
de uma filosofia forte, que lhe dera a própria vida e a cultura. Sabia que o
que é, é porque tem de ser. Compreendia a maldade e a bondade, admirava o
idealismo da regeneração humana, entendendo a sua inutilidade e ineficácia; não
tinha nenhuma forma de religião e admitia e respeitava todas as religiões. Tudo
era expressão humana, e não lhe cabia senão olhar e comentar os homens. Não os
acusava, reproduzia-os; e à natureza má opunha o sorriso inteligente, que é o
gesto adequado à beleza, melhor que as lágrimas indiscretas. Era um puro, nobre
e grande artista, superior às modalidades de escolas. Com o decorrer do tempo,
agora que vai acabar a presença corpórea do escritor, crescerá a admiração da
sua obra e ficará para sempre. Valeu-lhe sobretudo, para a fazer tão igual, um
gosto instintivo que, dirigindo-lhe a cultura, na mesma cultura se apurou e se
firmou, evitando-lhe o erro em pontos de arte e estilo.
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Mário de Alencar (Mário Cochrane de Alencar), poeta, jornalista,
contista e romancista, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 30 de janeiro de 1872,
e faleceu na mesma cidade em 8 de dezembro de 1925.
Filho do grande romancista José de Alencar. Fez os primeiros estudos no
Colégio Pedro II, obtendo o título de Bacharel em Ciências e Letras, e
formou-se em Direito pela Faculdade de São Paulo.
São características de um grande escritor, e Machado de Assis será eterno
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