Bruno Viveiros
Martins*
8/12/2010
Numa festa de São João no bairro
carioca da Lapa, em 23 de junho de 1934, Noel Rosa conheceu uma dama de cabaré
que o encantou: Juraci Correia de Moraes. Ceci, como era mais conhecida, era
uma adolescente de 16 anos, recém-chegada da cidade serrana de Nova Friburgo.
Nessa data em que Noel
era homenageado no Cabaré Apolo, Ceci conseguia seu primeiro emprego como
dançarina. Começaria aí um dos casos de amor mais líricos da história da canção
popular brasileira.
Ceci - a dama do cabaré
Até então, Noel já havia
conquistado a fama com o sucesso “Com que roupa”; posto o país à venda em “Quem
dá mais?”; composto emboladas com o Bando dos Tangarás; arriscado sambas
anatômicos, como “Coração”, epistolares, como “Cordiais saudações”, e fonéticos,
como “Picilone”. Noel declarava todo o seu amor ao “feitiço sem farofa” de Vila
Isabel, envolvia-se em polêmicas com Wilson Batista sobre a malandragem e o
valor do sambista, e andava pelos morros do Estácio, Salgueiro, Mangueira e
Matriz na companhia de Cartola, Bide, Canuto, Ismael Silva, Heitor dos Prazeres.
Noel cantou os bêbados, os
maltrapilhos, os maltratados, a boemia, a cidade, a noite, a modernidade, os
acertos e os desmazelos do Brasil. Cantou de forma crítica, irreverente,
satírica, bem-humorada. Debochado, zombou da tragédia alheia e também da sua
própria. Afinal, era um homem comum, como todos os seus personagens. Por essa
razão, suas canções eram ouvidas no cinema, no carnaval, no rádio e no teatro.
O “bacharel” da Vila não precisou de diploma de colégio para desvendar o
mistério do samba. Segundo Noel, o samba “não vem do morro nem da cidade”.
Tudo isso parece ter perdido um pouco
do seu brilho diante do encontro com uma jovem que se tornaria uma das mulheres
mais desejadas da Lapa. O romance entre Noel e Ceci durou três anos, os últimos
da vida do compositor. E rendeu várias brigas, muita confusão, algumas idas e
vindas e sambas impecáveis, como “Dama do cabaré”, “O maior castigo que eu te
dou”, “Quem ri melhor”, “Só pode ser você”, “Pra que mentir”, “Silêncio de um
minuto”, “Último desejo”.
Suas composições, principalmente as
dedicadas a Ceci, pouco se assemelham ao estilo dos sambas extrovertidos, em
tom de galhofa e sátira, com que Noel cantava o cotidiano do povo carioca. Ao
cantar o amor, ele fala sério. Porém, fala na língua do povo. Adota a linguagem
do cotidiano como antídoto e usa tudo aquilo que era tido como prosaico,
popularesco, vulgar, impróprio... Para os críticos, nada disso convinha a uma
obra que tematizasse o amor, sentimento sublime, dedicado às figuras femininas
quase inalcançáveis.
Noel Rosa propõe uma nova atitude
diante da canção popular, da mulher e do amor. Sem prosopopeias, ele canta os
sentimentos vividos e não sonhados. Suas personagens são de carne e osso, e em
nada se parecem com musas encasteladas em altares longínquos. Seus sambas
empregam a linguagem coloquial para cantar os diversos aspectos da vida
carioca. Seu modo intimista e descontraído de cantar e de se fazer acompanhar
em várias gravações de suas composições coloca sua obra em sintonia com o
universo urbano da época.
Durante muito tempo, os compositores assumiram um modelo bem comportado para falar da mulher como “moças de família” e “esposas dedicadas”, consagradas em canções como “Ai que saudades da Amélia” (1942), de Ataulfo Alves e Mário Lago. Este samba, de enorme sucesso, cristalizou a imagem idealizada de que a “mulher de verdade” não faz exigências, não tem desejo próprio nem vaidade. Ela apenas cumpre de forma resignada e submissa os deveres do lar. Poeta muito soturno, Noel deixa clara a sua preferência pelas mulheres da noite, como na canção “Dama do cabaré”, composta em 1936 e dedicada a Ceci:
Foi num cabaré na Lapa
Que eu conheci você,
Fumando cigarro,
Entornando champanhe no seu soirée.
Dançamos um samba,
Trocamos um tango por uma palestra.
Só saímos de lá
Meia hora depois de descer a orquestra.
Em frente à porta um bom carro nos esperava,
Mas você se despediu e foi pra casa a pé.
No outro dia lá nos Arcos eu andava
À procura da dama do cabaré.
Que eu conheci você,
Fumando cigarro,
Entornando champanhe no seu soirée.
Dançamos um samba,
Trocamos um tango por uma palestra.
Só saímos de lá
Meia hora depois de descer a orquestra.
Em frente à porta um bom carro nos esperava,
Mas você se despediu e foi pra casa a pé.
No outro dia lá nos Arcos eu andava
À procura da dama do cabaré.
Por meio de suas canções de cunho
amoroso, Noel Rosa lança o moralismo às favas numa época em que a figura
feminina era quase sacralizada. Cantar o amor carnal, erótico, sem decoro e
livre dos códigos de compostura, por uma dançarina de cabaré e sofrer por uma
mulher que não vivia dentro dos padrões de conduta social era desafiar o sempre
convicto lema da defesa da moral e dos bons costumes.
Em fins de 1936, o sambista da Vila
andava afastado do burburinho da Lapa. Corria a notícia de que Ceci tinha um
novo amor: o ator de teatro e também compositor Mário Lago (1911-2002). No dia
de seu aniversário, 11 de dezembro, Noel resolveu ir ao encontro da amada.
Decide, então, procurá-la para trocar algumas palavras. Quem sabe um jantar no
fim da noite? Ela aceitou o convite, mas já era tarde. O silêncio entre os dois
havia se tornado absoluto. Noel confessou o seu luto em uma canção destinada a
homenagear um “um amor cheio de glória” que lhe pesa na memória. Na noite em
que saiu para comemorar seu aniversário, compôs ironicamente, ao pé da cama da
musa, seu “Último desejo”, canção que anunciava o fim do romance:
Nosso amor que eu não esqueço,
E que teve o seu começo
Numa festa de São João
Morre hoje sem foguete,
Sem retrato e sem bilhete,
Sem luar, sem violão.
Perto de você me calo,
Tudo penso e nada falo
Tenho medo de chorar.
Nunca mais quero o seu beijo,
Mas meu último desejo
Você não pode negar.
Se alguma pessoa amiga
Pedir que você lhe diga
Se você me quer ou não,
Diga que você me adora,
Que você lamenta e chora
A nossa separação.
Às pessoas que eu detesto,
Diga sempre que eu não presto
Que meu lar é o botequim,
Que eu arruinei sua vida,
Que eu não mereço a comida
Que você pagou pra mim.
E que teve o seu começo
Numa festa de São João
Morre hoje sem foguete,
Sem retrato e sem bilhete,
Sem luar, sem violão.
Perto de você me calo,
Tudo penso e nada falo
Tenho medo de chorar.
Nunca mais quero o seu beijo,
Mas meu último desejo
Você não pode negar.
Se alguma pessoa amiga
Pedir que você lhe diga
Se você me quer ou não,
Diga que você me adora,
Que você lamenta e chora
A nossa separação.
Às pessoas que eu detesto,
Diga sempre que eu não presto
Que meu lar é o botequim,
Que eu arruinei sua vida,
Que eu não mereço a comida
Que você pagou pra mim.
Com esse samba em forma de
testamento, Noel se despede de Ceci. Despojado de qualquer extravagância ou
sentimentalismo, ele cantou o amor de maneira simples e requintada, em que
letra e melodia são elaboradas de forma cuidadosa. Sua desilusão era uma experiência
do mundo real. Seus versos são cantados na primeira pessoa, mas já não havia
mais nada o que fazer em nome desse amor. Não existe em Noel qualquer oposição
entre vida e arte. Cronista da modernidade urbana, seus sambas estão impregnados
de vida, mesmo quando o assunto é o fim do amor.
O compositor não teve tempo de ouvir
a gravação lançada pela cantora Aracy de Almeida (1914-1988) em março de 1938.
Ela só foi possível porque Noel, já com a saúde muito debilitada, confiou seu
registro ao amigo e parceiro Vadico (1910-1962). O lançamento póstumo, poucos
meses após sua morte, fez um grande sucesso na voz de Aracy de Almeida, que
foi, ao lado de Marília Batista, uma das principais intérpretes de Noel Rosa.
Ainda no início da carreira, a cantora já dava mostras da personalidade forte
que a marcou ao longo de sua vida artística.
Na gravação de “Último desejo”,
Aracy tomou a liberdade de fazer ligeiras alterações em alguns versos. Ela
canta “Que meu lar é um botequim” em lugar de “Que meu lar é o botequim”. A
modificação leva a crer que o narrador teria um lar, longe da boemia. A versão
original, ao contrário, deixa claro que ele não teria outro lar que não fosse o
próprio bar. Fato sintomático, se lembrarmos que Noel era casado com Lindaura
Martins, mas confessava seu amor a Ceci em um samba reconhecidamente
autobiográfico. “Último desejo” foi regravada em 1963 por Marília Batista, em
uma versão que também levanta polêmica. Segundo ela, o compositor teria
ensinado à cantora uma segunda parte do samba diferente da versão consagrada
por Aracy.
A história do amor de Noel por Ceci
foi revisitada de forma magistral por uma cantora ainda novata, recém-chegada
da Bahia, em 1965: Maria Bethania. Nesse ano, ela lança o compacto “Maria
Bethania canta Noel Rosa”. Fiel à dor do “filósofo do samba”, Maria Bethania
acentua o tom de melancolia, dotando ainda de mais pesar a exatidão dos versos
do sambista. Acompanhada somente pelo violão de Carlos Castilho, ela volta ao
passado para homenagear o compositor e também Aracy de Almeida. Na década de 1950, a intérprete fez uma
série de gravações do repertório do sambista, contribuindo para que Noel fosse
redescoberto pelas novas gerações por meio de discos como “Canções de Noel Rosa
com Aracy de Almeida”, lançado em 1955.
Considerada uma das obras-primas de
Noel Rosa, “Último desejo” mereceu muitas regravações. Todas elas contribuem
para que esse samba cumpra o seu papel: lembrar o sentimento dedicado pelo
sambista à sua amada. Mesmo sabendo que todo “grande amor tem sempre um triste
fim”.
* Bruno Viveiros Martins é autor
do livro Som Imaginário: a reinvenção da cidade nas canções do Clube da Esquina
(Editora UFMG, 2009).
Saiba Mais –
Bibliografia
ALMIRANTE. No tempo de Noel Rosa. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1977.
MAXIMO, João; DIDIER, Carlos.
Noel Rosa, uma biografia. Brasília: Linha Gráfica: Ed. UnB, 1990.
NAVES, Santuza Cambraia.
“Modéstia à parte, meus senhores, eu sou da Vila!: a cidade fragmentada de Noel
Rosa”. Estudos Históricos, v. 16, p. 251-268. Rio de Janeiro, 1995.
PACHECO, Jacy. Noel Rosa e sua época. Rio de Janeiro: G.A.
Penna, 1955.
Saiba Mais – Discos
ARACY DE ALMEIDA. “Canções de Noel Rosa com Aracy de Almeida”. Continental, 1955.
MARIA BETHANIA. “Noel Rosa e outras raridades”. Biscoito Fino, 2006.
VÁRIOS INTÉRPRETES. “Noel Rosa
pela primeira vez”. Funarte/Velas, 2000. (Caixa com 14 CDs).
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